Políticas públicas e raça - Módulo 3
A construção histórica da ideia de raça
Os conteúdos abordados no módulo três, intitulado Políticas públicas e raça,
têm como objetivo fazer uma abordagem desde o início da construção do
conceito de raça, enfatizando a presença e fundamental importância dos
movimentos negros e de mulheres negras, para traçar diagnósticos que
demonstrem as situações de desigualdades raciais e estes serem as bases
para a criação de políticas públicas de promoção de igualdade.
Ao
aprofundar-se nos textos da unidade é possível entender que o conceito
de raça que se encontra na sociedade hoje, foi construído ao longo de
muitos anos e debates que geraram diversas vertentes em busca de
explicar a origem da humanidade partindo do pressuposto de suas inúmeras
diferenças. Ao tentar responder a estas indagações, a humanidade acabou
dividida por subgrupos denominados raças e junto com isso veio um mal
que agride amplamente as sociedades, o racismo.
O racismo é um fenômeno que não atua sozinho, ele se esconde e se
combina a muitos outros, como o nacionalismo, o imperialismo, o
classismo, o etnocentrismo que segundo o Aurélio (1999, p.849) é considerar as categorias, normas e valores da própria cultura ou sociedade como parâmetro aplicável a todas as demais, entre
muitos outros que influenciam para que este comportamento
discriminativo se prolifere mundialmente. Essa facilidade camaleônica
faz com que suas manifestações não se apresentem somente de forma
agressiva, intolerante e evidente, permite que existam momentos de
racismo simbólico, velado.
Durante essa construção da ideia de raça e seus efeitos
racistas ao longo do tempo, podem-se perceber transformações nos
conceitos e no vocabulário, por meio da nova concepção do conceito de
cultura e das lutas pela presença e manutenção do multiculturalismo.
Porém ainda persiste o medo da mistura, independente de ser de forma
biológica ou cultural.
A intenção da unidade é abordar as origens do conceito de raça,
utilizando uma retrospectiva histórica de como este foi construído, nas
ciências naturais até o século XIX e sua representação nas ciências
sociais, principalmente após o século XX.
Existem três vertentes que melhor auxiliam a explicar a construção do
conceito de racismo ao longo do tempo. Mas vale salientar que
perpetuação da ideia de raça foi impulsionada, ao longo do tempo, por
argumentos de fundos religiosos, culturalistas, nacionalistas e
biológicos.
A primeira vertente exprime que o conceito de raça só apareceu no
século XIX, por meio da concepção científica e com o racismo científico,
denominado racialismo, segundo Gestão de Políticas Públicas em Gênero e
Raça/ GPP – GR (2010, p.17) um conjunto das ciências que buscam comprovar que a raça humana está subdividida em outras raças ou sub-raças. E ainda segundo Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/ GPP – GR (2010):
|
Essa concepção mostra que o racismo, segundo textos da unidade, foi
fortemente impulsionado enquanto produto da ciência de uma determinada
época e esse racismo poderia ter sido minimizado ou desestruturado pela
ciência atual. Mas, ele ainda persiste, apesar das teorias científicas
que o desmentem e muitos ainda acreditam na existência de diversas
raças.
A segunda vertente classifica o racismo como uma forma derivada do
etnocentrismo. Em outras palavras, segundo Gestão de Políticas Públicas
em Gênero e Raça/GPP – GR (2010, p14) o racismo
teria origem na idealização de algumas sociedades, grupos e culturas
como modelos a serem seguidos e como parâmetro para julgar de forma
negativa as demais sociedades. Essa concepção ganhou força e uma
roupagem científica no século XIX, na Europa, tornando-se radical e
universal após a expansão colonial e a globalização, especialmente com
os movimentos de migração em massa.
A terceira vertente coloca o racismo como um fruto da modernidade, assim Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR afirma que:
... que se constrói a partir da secularização, ou seja, do afastamento da religião como forma de classificar e explicar o mundo, com a emergência do Iluminismo no século XVIII. O Iluminismo está marcado, entre outras coisas, pelo debate sobre o universalismo, o diferencialismo, o relativismo e pela centralidade e supremacia do “homem” e do indivíduo frente aos outros seres vivos. Vale destacar que o termo “homem” usado aqui entre aspas refere-se exclusivamente ao termo utilizado pelos filósofos iluministas para referirem-se à humanidade. Uma das críticas ao Iluminismo, já explicitada no Módulo 1, é justamente o questionamento ao emprego de “homem” como supostamente universal, denunciando seu caráter particularizado, marcado pelo gênero masculino e pela raça branca. (Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR, 2010, p.15)
Quando
visto como um fenômeno histórico surgido no Ocidente, o racismo possui a
discussão do iluminismo sobre a diversidade e a unidade humana e das
sociedades de século XVIII em uma de suas origens e esta se configurou
por meio das discussões sobre o relativismo e o universalismo.Nesse
momento, o debate entre unitarismo e diferencialismo foi além da
discussão sobre a diversidade humana. Assim, segundo a teoria
unitarista, haveria uma essência humana, independente das diferenças
externas que cada povo possui. Já a diferencialista, defende que a
riqueza humana é composta por suas diferenças superficiais. Por outro
lado, as teorias do relativismo e universalismo se preocupam com a
questão da verdade e do lugar ocupado pela civilização européia em
relação às demais sociedades. Segundo o universalismo, supostamente,
esta teria critérios universais para julgar a moral, enquanto o
relativismo vê a cultura como fruto da humanidade. Sendo assim, cada
sociedade tem a sua própria cultura.
Outro debate importante foi o eclesiástico sobre a natureza humana
existente ou não nos povos indígenas e a postura da igreja diante dos
homens que povoavam as Américas na época do descobrimento. Com a chegada
dos povos indígenas no universo da humanidade trouxe de volta as
teorias sobre a diversidade da origem humana, antes já discutida. Porém,
a humanidade dos índios por intermédio do Vaticano e de suas intenções
os livraram da escravidão, mas isso não ocorreu com a população negra.
Os homens e mulheres negras, por muito tempo foram escravizados, vistos
como propriedade dos senhores de escravos. Essa prática articulada ao
lucro que o comércio escravocrata gerava se justificava em diversos
conceitos de ordens distintas em relação à natureza destes seres
humanos. Assim, foi sendo construída uma ideia de raça e de distinção
entre povos:
Disponível em: Colonização |
A escravidão atlântica foi objeto da reflexão iluminista dentro do debate sobre o direito natural e a possível extensão destes direitos – de igualdade e liberdade – a toda humanidade. A consolidação da escravidão nas Américas e a associação de “escravo/a” a “negro/a”, foi transformando paulatinamente as percepções dos diferentes tipos humanos. De uma observação que associava a aparência à localização geográfica – brancos, amarelos, negros, indígenas etc –, foram-se aproximando algumas dessas “raças” às características de animalidade, especificamente os/as africanos/as e seus/as descendentes. Posicionando o/a negro/a no extremo da animalidade, como um espelho invertido da Europa civilizada, os/as indígenas americanos/as estavam, nessa reflexão, na posição de homem natural pré-civilizado (o bom selvagem), vistos como testemunhos de um passado não corrompido do “homem e da mulher brancos/as”, tal como descrito por Jean-Jacques Rousseau. (Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR, 2010, p.29)
Outras duas teorias amplamente discutidas foram o poligenismo, que
considera que a espécie humana não possui uma única origem, ela é
descendente de diversos grupos e o monogenismo segundo a qual a raça
humana é proveniente de um único ser primitivo. O monogenismo acabou
vencendo, pois muitas teses poligenistas migraram para as monogenistas e
esta ganhou força.
O racismo foi sendo construído desde a época da escravidão atlântica,
na luta pela exclusão do povo judeu na Europa (Gestão de Políticas
Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR, 2010, p.21). O
conceito de raça pode significar linhagem, composta por uma origem
étnica ou regional, que faz oposição e ao mesmo tempo, mistura às
qualidades morais, físicas, e comportamentais dos indivíduos,
independente dos povos aos quais pertencem. Assim:
|
É importante ressaltar que sobre as muitas “raças” conquistadas ou
excluídas surgiu uma ciência raciológica que se baseou em outras
ciências como a Anatomia, Antropologia Física, Arqueologia, Linguística e
a Geografia. A questão da igualdade entre raças não era bem aceita nem
mesmo entre as pessoas que se posicionavam antiescravistas. Assim, a
ciência biológica orientou-se pelas características morfológicas que
implicam a moral e as diversas potencialidades das diferentes raças,
além dos critérios da cor e físicos, ajudando a construir uma cultura de
separação.
O mais famoso defensor das teorias racistas, Gobineau (Gestão de
Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR, 2010, p. 43), ao contrário
dos demais pensadores, temia que o futuro das gerações futuras fosse à
mistura de raças. Sua posição de proclamador do racismo biológico se deu
ao fato de sair em defesa da retomada da história da raça ariana, uma
raça pura e conquistadora.
Disponível em:Gobineau
Disponível em:Gobineau
Para
entender a origem das raças ou da raça humana é imprescindível abordar a
teoria de Charles Darwin. Sua teoria da evolução teve o objetivo de
explicar o desenvolvimento das espécies através do processo de seleção
natural, por meio da herança genética e da adaptação destes seres ao
meio ambiente. Muitas teorias vieram a ser conhecidas como darwismo
social, em busca de aplicar no universo social as teorias de Darwin, mas
estas se restringiam ao mundo natural. Cristina Costa (2005) traduz o
darwismo social da seguinte maneira:
... o princípio a partir do qual as sociedades se modificam e se desenvolvem de forma semelhante, segundo um mesmo modelo e que tais transformações representariam sempre a passagem de um estágio inferior para outro superior, em que o organismo social se mostraria mais evoluído, mais adaptado e mais complexo. Esse tipo de mudança garantiria a sobrevivência dos organismos — sociedades e indivíduos ---, mais fortes e mais evoluídos. (COSTA, 2005: 66 - 67)
Disponível em: Charles Darwin
O darwinismo e o darwinismo social possibilitaram a unificação de
diversas teorias existentes no século XX, uma delas foi a origem das
espécies, inclusive a humana. O darwinismo social segundo Costa (2005,
p. 68) além de justificar o colonialismo da Europa e do resto do mundo,
refletia o grande otimismo com que o progresso material da
industrialização era percebido pelo europeu. Os europeus estavam
otimistas em relação a sua cultura.
A
discussão sai do campo das ciências biológicas e entra no terreno das
ciências sociais. A Antropologia Evolucionista foi surgindo com o
objetivo de analisar, comparar e refletir sobre as culturas das
populações que não eram européias, especialmente as que viviam em
situação de colônia e estas passaram a ser chamadas de sociedades
primitivas. A Antropologia teve a emergência do trabalho de campo como a
base para suas pesquisas, o que permitiu uma melhor abordagem das
sociedades. Antes, esta buscava fazer comparações sobre os traços
culturais e comportamentais e sua evolução ao longo do tempo.
A Antropologia moderna preocupou-se em defender a ideia de que um
elemento cultural só poderia ser entendido, levando em consideração o
meio ao qual faz parte. A Antropologia Física, segundo Gestão de
Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR (2010, p. 53) Franz Boas...
provou... que as diferenças raciais entre grupos humanos não eram
suficientes para comprovar diferenças morais de habilidades e
comportamentos. Assim, foi possível entender que os seres humanos e suas
formas de viver são produtos do meio, de suas vivências, de sua
cultura, porém estas não eram imutáveis. O mais interessante é que Franz
provou isto utilizando os mesmos instrumentos craniométricos usados em
outras pesquisas.
Disponível em: Franz Boas
Franz
Boas foi o inaugurador da Antropologia Cultural nos Estados Unidos da
América, dedicando-se a refinar o conceito de cultura. Dois conceitos
centralizam esta ciência social:
- Cultura: é um conjunto de ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais artificiais (isto é, não naturais ou biológicos) aprendidos de geração em geração por meio da vida em sociedade.
- Etnia: ou um grupo étnico é uma comunidade humana definida por afinidades linguísticas e culturas. Geralmente reivindicam para si uma e um território
- A palavra etnia é usada muitas vezes erroneamente como um eufemismo para raça, ou como um sinônimo para grupo minoritário. A diferença reside no fato de que etnia compreende os fatores culturais, como a religião, a língua, hábitos gastronômicos, hábitos no vestuário, outras tradições, etc., enquanto raça compreende apenas os fatores morfológicos, como cor de pele, constituição física, estatura, traço facial, etc.
Após a descolonização, a Antropologia perdeu o seu objeto de estudo. Os
conceitos de etnicidade e identidade passaram a ser o primeiro plano de
investigação desta ciência social. A identidade étnica se resume a um
sentimento que pertence a um determinado grupo como, seus modos de vida,
comportamentos, valores e crenças. Enquanto a etnicidade é a
mobilização da chamada identidade étnica, segundo Riesman, etnicidade é a autoconsciência da especificidade
cultural e social de um grupo particular, ou seja, o fato de se
pertencer a um grupo culturalmente ligado. Nesta concepção estão implícitos os papeis sociais dos indivíduos dentro do grupo e fora dele, inclusive na política.
Após
abordar os conceitos discutidos na unidade é preciso salientar que o
conceito de raça foi sendo construído ao longo do tempo e até hoje
aparece, de forma velada ou não, como um princípio de diferenciação
entre as pessoas. Partindo do pressuposto de que todos são iguais e
possuem os mesmos direitos e deveres, o conceito de raça é difícil de
ser entendido quando este é colocado como se a humanidade fosse fruto de
diversas raças, quando se sabe que ela se originou de uma única raça e
foi se transformando ao logo do tempo e de sua descendência.
Acredito que o papel de Gestor e do Profissional, neste caso deve
caminhar junto, pois uma boa política de igualdade e principalmente de
conscientização e informação, para funcionar, precisa estar atrelada à
educação. Torna-se necessário implantar de forma mais eficiente nas
escolas as discussões sobre identidade. O educando precisa entender que
apesar de estar inserido em uma cultura, ele também possui a sua própria
cultura, aquela que adquiriu em sua família e que às vezes não é igual
ao do colega, porém é tão importante quanto à dele.
O Brasil é um país multicultural, em seu território existem povos de
diversas origens, frutos de imigração e assim a mistura de raças, tão
temida por antigos racistas citados acima, compôs a sociedade
brasileira. O resultado disso é um povo alegre, diferente em suas
características físicas, porém dotados de capacidades, direitos e
deveres iguais legalmente adquiridos. Seria errado dizer que é um país
livre de racismo, pois embora se manifeste, em sua maioria, de forma
velada, este é um mal do qual ele não está livre.
Disponível em: Multiculturalismo no Brasil
A escola é o lugar de exaltar as diferenças culturais presentes na
sociedade, de engrandecer a importância que cada povo teve na construção
dessa nação, sem fazer distinção de tamanho de contribuição, pois é
evidente que ao mesmo tempo em que alguns povos fizeram grandes feitos
estes mesmos também causaram grandes estragos e ajudaram a construir a
cultura racista. Pensando assim é possível compreender que todos
contribuíram de certa forma de maneira significativa para a construção
da sociedade brasileira.
Quando se fala em exaltar as diferenças, o objetivo é fazer com que
estas deixem de ser usadas como rótulos e passem a ser vistas apenas
como características. A escola é um ambiente onde muitas culturas se
encontram, é um lugar perfeito para proliferar discriminação e levar
seus membros a situações de extremo sofrimento, por isso é um lugar que
necessita de atenção. È ela o primeiro lugar onde políticas de igualdade
precisam ser implantadas, visando inibir que a cultura de discriminação
continue a contaminar as novas gerações que estão sendo formadas.
Assim sendo, concluí-se que a construção da idéia de raça passou por
inúmeros estágios, ajudou a gerar o racismo em muitas nações, causou
diversas discussões e originou teorias ao longo da história. Mas fica a
lição que só existe uma raça, a humana, e esta foi se modificando ao
longo do tempo, ganhando novas características de acordo com os meios
aos quais cada povo esteve inserido.
Referências Bibliográficas
COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 2005. p.
Definição dicionário Aurélio, 1999, p.849
Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR:
módulo III/ Orgs. Maria Luiza Heiborn, Leila Araújo, Andreia Barreto.
Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de Políticas para Mulheres,
2010.238p.
Por: Arine Rodrigues Alves
Nenhum comentário:
Postar um comentário