O mar revolto agitava o
imenso navio que transportava a carga humana de mais de dois mil negros
africanos, amontoados um sobre o outro, em condições desprezíveis e desumanas. Homens
maldiziam a triste sina; mulheres lamentavam a dor de não ter leite nos seios
para a amamentarem seus recém nascidos; crianças choravam de sede e de fome. Os
velhos agonizavam... A escuridão era total. Não se sabia se era dia ou se era noite,
mas havia um momento em que choros e lamentam cessavam e todos dormiam
Num indescritível
paradoxo, o despertar dos negros e das negras era doce, sereno e traziam-lhes
uma momentânea paz só experimentada nas aldeias africanas de onde foram
arrancados e jogados naquele hediondo bojo de navio negreiro. Essa paz tinha a
grata figura de uma jovem yourubana e chamava-se Bakwena. Menina, ainda, com sua voz adocicada entoava
seu canto com as falas de esperança e a melodia de uma plangência, que tocava a
alma mais amargurada.
Se ao adormecer, a dor,
a fome, a sede, o cansaço e as humilhações dilaceravam alma, o despertar dos
africanos com a melodia de Bakwena aplacava, mesmo que momentaneamente, as
dores dos irmãos de raça e de sofrimento. Os Griôs passaram a chamar a jovem
cantante carinhosamente de Sonbesie, a
Cigarra. E durante dias, semanas e meses, naquele nefasto bojo tumbal, o canto
da Sonbesie tornou-se o sublime alento das negras criaturas desesperadas.
Os africanos trazidos
ao Rio de Janeiro eram desembarcados no Cais do Largo do Carmo, hoje Praça XV.
O local era o centro comercial escravagista. Ali, havia lojas, mercados,
galpões e escritórios de corretores de mercadorias negras, pois era rentável o
comercio de compra e venda de escravos. Também, eram forte no local e nas
cercanias, pequenos e médios estabelecimentos, onde se fabricavam e vendiam
objetos de ferro para tortura e aprisionamentos dos escravos.
Em início de 1834
chegou ao Cais do Largo do Carmo, entre milhares de escravos, a jovem menina,
Bakwena, que debilitada da viagem seguiu numa embarcação menor, com outros
igualmente debilitados, para o Ancoradouro do Valão Longo, hoje errônea e
burramente definido como Cais do Valongo.
O Valongo nunca foi um
cais. Qualquer historiador decente e correto, que recorrer às pesquisas, saberá
que o local era um ancoradouro que recebia a escoação do sal, que vinha do cais
do porto, e era depositada numa pedra, hoje a histórica Pedra do Sal.
O valão não tinha extensão
e nem profundidade suficiente para receber grandes embarcações. No Cais do
Largo do Carmo, as mercadorias eram transferidas para embarcações menores.
Assim era com o sal e com os africanos e as africanas debilitadas, e
inutilizadas devido aos sofrimentos durante a penosa viagem no bojo dos navios
negreiros. Também os ditos incapazes como
os velhos e as crianças.
O Ancoradouro do Valão
Longo, que os desinformados denominam como Caís do Valongo, era um hediondo
palco dos horrores, onde ocorria marcação a ferro dos africanos e de africanas,
chibatadas, torturas, estupro... Havia também o mais terrível: o nefasto comércio de crianças para escravos
sexuais de padres, comerciantes, alferes e para provedores da Santa Casa de
Misericórdia.
Somente os movimentos
negros e o IPHAN – Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – enxergam naquele repugnante templo do holocausto
dos Africanos, no Brasil, um local sagrado que deve ser venerado, cultuado e
homenageado. Sem qualquer pesquisa honesta, conseguiram, junto a UNESCO, o
titulo de Patrimônio Cultural da
Humanidade.
Tentam saber quanto
custou aos cofres públicos o titulo de
Patrimônio Cultural da Humanidade conferido aquele palco dos horrores. Gastos
com viagens internacionais, hospedagens, alimentação e diárias dos
‘historiadores”, “pesquisadores” e diretores do IPHAN, e divulgação paga na
mídia. Uma fortuna. Para que? Quem hoje passa pelo local vê o estado lastimável
em que se encontra. Lixos, ratos, criadouro de mosquitos da dengue... à noite,
nos fins de semana, vira banheiro publico dos beberrões.
Negros marcados a ferro
em brasa; crianças e mulheres estupradas à luz do dia; velhos moribundos
despejados vivos na Baia de Guanabara; venda, compra e leilão de africanos...
Esse palco dos horrores constitui um dos inúmeros desserviços, prestados pelos
pretos de ganhos dos movimentos negros, à negritude brasileira, que hoje
cultuam com honraria, religiosidade e culinária, aquele abatedouro de
africanos.
Os adultos enfermos e
crianças debilitadas, vendidos por quantias insignificantes, depois de
“recuperados” na Santa Casa de Misericórdia, eram devolvidos aos seus
proprietários, e retornavam ao Valão Longo para serem alugados como pretos de ganho,
servos, pescadores, recolhedores de excrementos dos animais de tração, transportadores
das liteiras, cozinheiras e damas de companhia. As negras tinham ainda a
desventuras de serem levadas para regiões longínquas, do Estado do Rio de
Janeiro, para serem escravas sexuais, principalmente de párocos, vigários, de cabos
e soldados e de alferes. Essa era a hedionda rotina no Valão Longo..
Segundo o Historiador,
Israel de Paula, não foi diferente com a menina Bakwena.
Disserta o Historiador. – Arrematada por um Tropeiro, Bakwena foi
encaminhada à Santa Casa de Misericórdia, onde depois de recuperada foi devolvida ao Tropeiro. Por ter uma divida pessoal
com um certo Padre, da Freguezia do Pilar do Igoaçu, foi doada a ele.
O primeiro registro que
assinala a existência de Bakwena está registrado no livro de aquisição de
“peças”, da Freguezia do Pilar do Igoaçu,
de 30 de Outubro de 1834, que consta: ... que foi recebido por doação, uma negrinha, de nome, africano, Bakwena,
de 14 anos, de seios pontudos, lábios
grosso, olhos negros, que segundo disse o Capitão Mor Severiano Duarte, é da
nação Yorubá, mas o Reverendo Padre Nuno Paes Leme, batizou com o nome de
Sabina. (...) Nesta freguesia há somente um engenho de fazer Açúcar, que
pertence ao próprio, padre dono de outros 70 escravos. PS. Descrições
versadas ao português atual.
Após ter recebido a
“doação”, o Padre Nuno Paes Leme,
iniciou a violentar a menina Bakwena, mantendo-a durante anos – entre fugas e
capturas – como escrava da sua nefasta libido. Desse ato hediondo, nasceram
filhos que foram vendidos ou doados sem o conhecimento, e sem que a mãe
soubesse o destino.
Cansada dos maus tratos
e da violência sexual ao qual lhe foi imposto pelo Vigário Geral, Bakwena
executou inúmeras fugas. Recapturada, fugia de novo.
A fama da Nêga Sabina,
como passou a ser conhecida nos engenhos, fazendas, senzalas e Quilombos
Fluminense, foi além do seu canto de aplacar as dores suas e dos seus iguais. Ficou
conhecida também pelas fugas que executavam mesmo sob a severa vigilância dos
feitores do Padre Nuno. O Padre, no entanto, sempre colocava um batalhão de
capitães do mato e, também, valia-se de soldados cedidos pelo capitão mor para
trazê-la de volta.
Os antigos, da região
que vai de Gramacho, Baixada Fluminense, à Santa Maria Madalena, no sudoeste
fluminense, contavam que as fugas da Nega Sabina aconteciam nas diversas
cadeias em que era presa. A motivação dessas fugas era sempre a mesma: o seu
canto que seduziam os carcereiros.
Na solidão das celas,
principalmente nas noites de luar, ela entoava seu canto dolente da áfrica
distante, que tocava fundo na alma dos carcereiros, todos africanos ou filhos
de africanos. Seduzidos pela doce voz da negra, da plangente melodia e da
mensagem de liberdade na letra do canto, eles abriam as celas e dava fuga à
prisioneira. Algumas vezes, por sua beleza e formosura, seduzia-os a um suposto
idílio amoroso. Ao ter as celas abertas, colocava o sedutor fora de combate e
ganhava a estrada.
Foi o Historiador
Israel de Paula quem me falou da Nega Sabina, a Cigarra da Aurora Boreal. E
narrou-me como tomou conhecimento dessa Personagem Negra, que a história não
menciona. Narrou-me Ele.
– Eu já tinha ouvido fala da Nega Sabina, mas foi Dona Evangelina
Nascimento, aos 95 anos, carapinha branca e o seu tradicional cachimbo no canto
da boca, quem forneceu-me em Visconde de Imbé, Noroeste Fluminense, em Maio de
1982, um relevante depoimento. Esse material ficou anos perdido. Com regozijo consegui
recuperar as quatro paginas velhas datilografadas. O depoimento da Dona
Evangelina foi colhido no mini gravador K7, depois transcrito para uma
“bolacha” de vinil e, finalmente, datilografado. Devido às mudanças de
residências, o material ficou numa caixa no sótão da casa da minha irmã mais
velha, na Vila Valqueire, e me foi devolvido poucos anos atrás.
E continua o Historiador
mostrando-me uma página digitada – Eis um trecho do depoimento da (hoje
falecida) Dona Evangelina: – Uma das
passagens mais bonitas que eu ouvia quando menina, sobre a Nega Sabina,
foi
quando ela foi capturada por um capitão do mato, nas matas de Magé. Numa
noite
alta, Nega Sabina estava com os pés e as mãos amarradas. Tinha sede e
fome. O catiço do capitão do mato já estava pronto
para usar ela paras as sem vergonhices dele. De repente ela começou a
cantar
uma canção muito triste do lugar de onde ela veio da África. O capitão
do Mato, também era africano, lá
daquelas bandas. E não é que o nêgo safado ficou abilolado com a música
da Nêga! Com o remorso remoendo por dentro, o maldiçoado
capitão do mato desamarrou a coitada, e ainda deu pra ela um bornal com
um naco
de carne seca e uma botija de farinha e mandou a infeliz seguir o rum
dela.
Quando os dois se despediram, ela deu nele um longo e apertado abraço e
disse:
– “Você é preto. Preto
não deve fazer cativo outro preto. Preto não deve vender nem perseguir e nem
açoitar outro preto” – Minha avó, que
Deus tenha lá no reino da glória, contava que a partir daquele dia, o preto
deixou de ser capitão do mato e passou a ser um libertador de escravos.. Ele até
se ajuntou com o Curiango (*), num Quilombo lá pras bandas, de Conceição de
Macabu. (Noroeste Fluminense)
(*) Curiango. Escravo
fugitivo que liderou várias revoltas e deu fuga a muitos escravos, no Estado do
Rio de Janeiro. Também fundou vários Quilombos, na região serrana, no norte e
no noroeste do estado. – Informação prestada pelo Historiador.
E a trajetória de fugas
e capturas da escrava Nêga Sabina continuava.
No livro de capturas do
chefe da policia da província do Rio de Janeiro, do ano de 1850, consta. – A 05 de Maio, em Itaborahy, foi capturado
pelos soldados do Alferes Tenório Marinho e entregue a cadeia publica, a
escrava fugitiva e criminosa, de vulgo Nêga Sabina, pronunciada no referido
termo por crime de morte contra o Reverendo
Padre Nuno Paes Leme, da Freguezia do Pilar do Igoaçu, seu dono, no dia 23 de
Março, deste mesmo ano.
Cansada dos anos de
suplicio e de violência praticados contra ela, pelo infame padre, Nêga Sabina o
matou.
Segundo Israel de
Paula, o ultimo e trágico registro, da trajetória de Bakwena em terras
fluminenses, assinala o fim de uma vida de muitos sofrimentos, fugas, prisões,
lutas, resistências e cantos. Cantos que amenizaram muitas dores e sofreres,
mas que se calaram de forma cruel e covarde.
A 03 de Dezembro de 1855, em Sant’Anna
do Macacú, foi capturado o soldado Genebaldo Cabral dos Santos, desertor da
tropa de linha, por haver assassinado a golpes de faca nas costas a escrava
de vulgo Nêga Sabina, fugida da cadeia da pública da capital....
Apesar da sua real
existência, nos dias de hoje, pouco ou quase nada se fala da Nêga Sabina. O seu
nome africano, Bakwena, foi esquecido logo após ser cedida ao padre.
Continua o Historiador.
– Soube da sua existência quando menino,
em meado dos anos 70, em Trajano de Moraes, noroeste fluminense, por meio da
Yolarixá, Cota D’Oxum, na época com 96 anos.
Um conteúdo maior, no entanto, consegui em 1982, em viagem a Visconde de
Imbé, quando conheci a senhora Evangelina que, numa roda de conversa, mencionou
a Nega Sabina. De posse de um gravador mini K7, gravei o depoimento dela.
No segundo semestre de
2011, eu próprio, ao pesquisar sobre Joãozinho da Gomeia, na comunidade
Sarapuí, em Gramacho, Duque de Caxias, Baixada Fluminense, ouvi sobre a Nega
Sabina. Foi por meio da, hoje falecida, Mãe
Pequena, Dona Valdevina. Ela me falou sobre a Nêga Sabina e a sua luta de
resistência contra a escravidão negra. Falou também sobre o seu poder de
acalmar as dores dos cativos e das cativas com seu canto plangente da África
distante. E falou sobre o poder de sedução da sua bela e formosa imagem.
Israel de Paula afirma
que ao compilar suas pesquisas, pode perceber que, com o passar dos tempos, o
raríssimo material que assinala a trajetória da doce menina Bakwena, mostra-á
transformada na Nega Sabina, fugitiva e
desordeira. Essa referência, em outras palavras, denota segundo ele que a
menina debilitada transformou-se numa rebelde. E todos nós sabemos que foram os
(as) rebeldes os (as) líderes fomentadores das grandes lutas e revoltas dos escravos.
O doce canto da menina
Bakwena, transformada na guerreira Nêga Sabina, certamente inspirou as lutas de
Lélia Gonzales e de Beatriz Nascimento; sublimam em resistência as amargas
lágrimas das negras mães dos filhos vitimas do genocídio promovido pela forças
policias racistas; embala a arte de Ruth de Souza, de Léa Garcia e de Zezé
Motta nos palcos, nos estúdios e nas locações; inspira a literatura de Conceição
Evaristo e da Helena Theodoro, inspiram as adoradas vozes e canções de Alaíde
Costa e de Áurea Martins...
Hoje, a presença de
Bakwena na historiografia ou na mitologia do escravismo no Brasil não é
conhecida, pesquisada e nem estudada; talvez, porque o pré nome vulgarizado, Nêga, gerador do
apelido de guerra Nêga Sabina, não desperta o interesse de negras e de negros pesquisadores
e historiadores.
Há outras mulheres
escravas, heroínas negras, com o apelido “Nêga” usado como pré nome.
Todas com histórias
de muitas lutas e resistências: Nêga Cafusa, Nêga Crioula, Nêga Esmeralda, Nêga
Dandara que lamentavelmente
não são merecidamente estudadas.
A Cigarra da Aurora Boreal.
Flávio Leandro
Cineasta,
Professor de Produção Audiovisual, Professor de Produção Teatral.
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