Esta é a quarta vez que a professora, ativista e filósofa Angela Davis, 71, vêm à
Bahia, e sua sexta visita ao Brasil. "Talvez por isso seja uma vergonha eu
não ter aprendido a falar português ainda", brincou, em coletiva de
imprensa nesta terça-feira (25), na reitoria da UFBA (Universidade Federal
da Bahia). "Tenho certeza que quando eu aprender, vou descobrir muitas
outras coisas positivas", concluiu.
Davis, além de reiterar o carinho que tem pelo Brasil e por
pensadoras brasileiras como Lélia Gonzalez, afirmou que as universidades
brasileiras têm muito a ensinar para as norte-americanas, em termos de
colocar em prática as ações afirmativas de combate ao racismo como, por
exemplo, as cotas raciais; e destacou a importância de um pensamento
abolicionista do que ela batiza de "sistema industrial carcerário", tema
que permeia seus estudos desde 1970:
"Se partirmos do pressuposto que o que devemos fazer é
simplesmente encarcerar essas pessoas para, então, eliminar a violência de
gênero, na verdade, estamos colaborando ativamente na continuidade da
reprodução da violência que estamos tentando erradicar".
Segundo dados do Infopen, a população
carcerária brasileira é composta por 94% de homens, mais da metade (55,07%) tem
até 29 anos de idade e, ainda, 61,67% é de negros ou pardos, com baixa ou
nenhuma escolaridade. 40% do total (quase 250 mil) é de presos provisórios, ou
seja, pessoas que se encontram cerceadas em sua liberdade sem terem sido
julgadas.
Grande crítica do sistema judicial no mundo, Davis, ao longo
dos anos, tem realizado discussões e estudos sobre o chamado
"abolicionismo penal", por entender que existe uma relação entre
encarceramento em massa e escravidão que, na verdade, reforça um
"instrumento de perpetuação da violência", e não o combate a ela.
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"Uma pergunta a ser feita pode ser: o quão
transformador é o ato de simplesmente mandar um homem que cometeu violência
contra mulher para uma instituição que simplesmente reforça e produz ainda mais
violência? Ou será que simplesmente essa retribuição vingativa, seria
suficiente? Ou nós estamos realmente comprometidos a purgar a sociedade deste
tipo de violência?", questiona.
Ainda segundo o relatório brasileiro, a população prisional
brasileira no Sistema Penitenciário em 2014 era 579.781 pessoas, levando em
consideração as prisões estaduais e federais. Desse total, 37.380 são mulheres
e 542.401, homens. Entre as mulheres, cerca de 50% têm de 18 a 29 anos. A
maioria, duas em cada três presas, é negra.
Os dados do Infopen também mostram que, em números
absolutos, o Brasil está em quinto lugar na lista dos 20 países com maior
população prisional feminina do mundo, atrás dos Estados Unidos (205.400
detentas), da China (103.766) Rússia (53.304) e Tailândia (44.751).
Davis expõe que é igualmente importante se pensar o assunto
entrelaçando gênero, raça e classe "dentro e fora dos Estados
Unidos", e pontua:
"Podemos
argumentar que, no que diz respeito à punição, o Estado é o agente punitivo
para os homens. Mas formas de punição que são consideradas privadas -- que
nos referimos a elas como violência doméstica -- afeta muito mais mulheres do
que os homens [...]. Isso também nos indica que simplesmente aprisionar homens
não acaba com a violência contra as mulheres. Provavelmente só terá o efeito
de exacerbar essa violência."
A visita ao
Brasil
Desde os anos 1980 Angela Davis faz constantes visitas ao
Brasil. "As pessoas me perguntam: 'Você já esteve no Rio?' Não. 'Você já
esteve em São Paulo?' Não. Mas estive em Salvador e de novo e de novo",
disse, ao iniciar conferência na UFBA. Desta vez, a vinda da ativista, que é
referência mundial no enfrentamento antirracista e do pensamento crítico
feminista, fez parte do evento "Julho das Pretas", organizado por
coletivos feministas baianos, que promoveu ações durante todo o mês.
Para marcar o dia 25 de Julho, Dia Internacional da
Mulher Afro-Latina e Caribenha, a filósofa e ex-presa política ministrou a
conferência "Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o
racismo". Com mais de 400 alunos e convidados, o salão nobre da reitoria
da UFBA atingiu sua capacidade máxima.
O grupo de poesia "Slam das Minas" deu início ao evento
e, em seguida, ao lado de lideranças do movimento negro do Brasil e autoridades
acadêmicas da Bahia, Davis citou a luta das mulheres negras no Brasil e
destacou que as norte-americanas têm muito a aprender com "a
movimentação que está acontecendo por aqui", especialmente sobre luta
por direitos e reconhecimento de violências:
"Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura
da sociedade se movimenta com ela,
porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se
encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo".
A conferência foi transmitida ao vivo, pelo canal estudantil
TVE. Assista abaixo:
Na década de 70, Angela Davis integrou um braço do grupo
Panteras Negras nos Estados Unidos e foi membro do Partido Comunista. Ela foi
presa e ficou mundialmente conhecida pela mobilização da campanha
"Libertem Angela Davis", que deu nome a um documentário, dirigido por Shola Lynch.
Atualmente, ela é professora emérita do departamento de estudos feministas da
Universidade da Califórnia e desenvolve trabalho intenso sobre a questão
prisional nos Estados Unidos.
Leia trechos da entrevista coletiva:
Arte x Política
"Como alguém que já esteve envolvido em diversos tipos
de ativismos durante décadas, minha percepção é que nós estamos encorajando as
novas gerações a utilizar a arte de outra maneira. E qualquer movimento que
tenha expectativa de provocar uma mudança duradoura deveria reconhecer a
importância da comunicação entre diferentes gerações. Certamente as novas
gerações tem muito a aprender com o conhecimento acumulado e a experiência de
gerações anteriores e, parece que, ainda mais importante é o fato de que as
gerações mais velhas tem muito a aprender com as gerações mais jovens. E, como
eu tenho aprendido e visto, esta é a geração que não tem medo. É a
juventude que ousa buscar o novo, que utilizar essa imaginação de tal maneira
que possamos trilhar caminhos ainda não trilhados."
O papel da universidade
"Se você me pergunta qual deveria ser o papel da
universidade, eu diria que deveria ser exatamente nutrir ou apoiar quem faz a
universidade acontecer. E isso levará à liberdade e à justiça para todos
nós. Mas vocês sabem que as universidades, geralmente, estão frequentemente
associadas às elites e, portanto, tornam-se também uma arena para um espaço de
disputa e para a luta contra o racismo -- e também uma luta em prol de modos de
produção de estudos que nos levem a reconhecer a conexão entre o conhecimento e
a liberdade. Mas eu devo dizer que estou muito impressionada com o sistema
de educacional brasileiro, do que o norte americano. Visto que temos
discutido ações afirmativas durante décadas, com um impacto muito diminuto. E
eu me lembro quando começaram os debates em torno de ações afirmativas aqui na
Bahia. E hoje, eu vejo consequências concretas. A Universidade Federal do
Recôncavo Bahiano nos proporciona uma evidência concreta de que é possível
garantir acesso à educação formal para a população que historicamente foi
excluida. Isso não significa que os problemas formam resolvidos. Mas eu
posso dizer que podemos aprender, nos Estados Unidos, com os exemplos
brasileiros e o que é possível alcançar com essas medidas".
O sistema carcerário industrial
"Como
alguém que trabalhou contra esse sistema durante a maior parte de minha vida,
de minha trajetória, eu, juntamente com outras pessoas que estão engajadas
nessa luta comigo, percebi que este tipo de punição que está associada ao
encarceramento, ao aprisionamento, tem mantido ligações muito óbvias com os sistemas
de escravização. Essa relação entre o sistema carcerário e a escravidão não
é só uma questão de estabelecer analogias. Mas é uma questão de genealogia.
Isso não parte do pressuposto daqueles que argumentam que este sistema
escravocrata deveria ser mantido como instituição, que deveria ser transformado
em uma instituição 'mais humanizada'. Isso não faz nenhum sentido. Então, nós
dizemos que, lutar pela reforma do sistema carcerário é uma forma de manter
o racismo e a repressão do encarceramento, do aprisionamento. E, portanto, a
abolição é a estratégia que abraçamos. Mas a abolição nos exige a fazer
perguntas não somente sobre o sistema de punição, mas também como a sociedade
constitui esse sistema de punição. Esse sistema é voltado e tem o objetivo de
manter o sistema a partir do qual ele emerge. E essa noção de abolição visa
reformar essa sociedade para que não haja mais a necessidade de dar atenção a
medidas de repressão. A abolição do sistema carcerário nos convida a pensar
a construir uma sociedade onde não haja racismo, sem estruturas
heteropatriarcais, sem estruturas capitalistas, onde há educação livre e acesso
gratuito ao sistema de saúde. E isso é uma mensagem diretamente colocada para
pessoas que se encontram no poder nos Estados Unidos. Portanto, é uma luta para
transformar a sociedade. De maneira sucinta, é uma luta abraçada pelo
socialismo".
O encarceramento e as mulheres negras
"É muito importante e necessário pensarmos sobre as
circunstâncias dentro do sistema carcerário feminino em uma perspectiva global.
Geralmente, é visto que o problema do encarceramento em massa é uma questão
referente ao homens. Porque, sim, os homens constituem a vasta maioria daqueles
que se encontram encarcerados mundo afora. E isso certamente é verdade. Mas não
significa que não podemos adquirir bastante conhecimento sobre esse sistema, se
observamos especificamente as circunstâncias que envolvem o sistema carcerário
feminino -- e as mulheres inseridas nele. Abordagens feministas naquilo que
chamamos de sistema carcerário industrial, nos leva a investigar tanto por meio
de pesquisas acadêmicas, como por meio do ativismo radical que, sim, há uma
conexão entre a violência institucional, por um lado, e a violência individual
(ou aquela que acontece em relações íntimas)."
Então, você vê, começamos, a princípio, falando de uma
parcela apenas do sistema carcerário. Mas desenvolvemos, a partir daí,
percepções mais amplas e significativas dentro desse sistema.
"Podemos argumentar que, no que diz respeito à punição,
o Estado é o agente punitivo para os homens. Mas formas de punição que
são consideradas privadas -- que nos referimos a elas como violência doméstica
-- afeta muito mais mulheres do que os homens. E, então, isso nos auxilia a
refletir sobre o sistema carcerário. Muitas mulheres apontam para o fato de
que, desse mundo dos "livres", elas têm vivenciado a violência sexual
também. Quando apenas visitam a prisão, elas são submetidas a revistas
constrangedoras e invasivas como revistas vaginais e no reto. Isso também constitui
violência sexual. Isso também nos indica que simplesmente aprisionar homens não
acaba com a violência contra as mulheres. Provavelmente só terá o efeito de
exacerbar essa violência. E esse é um argumento bastante convincente em
prol da abolição do sistema carcerário."
"Quando a gente olha para as condições de pessoas trans
encarceradas, principalmente mulheres trans, elas são também alvos do racismo.
E, assim, compreendemos o sistema carcerário mais uma vez, de maneira ampla.
Observamos também como esse sistema carcerário tem uma característica de
gênero. Então, você vê, começamos, a princípio, falando de uma parcela
apenas do sistema carcerário. Mas desenvolvemos, a partir daí, percepções
mais amplas e significativas dentro desse sistema. E não somente do sistema
carcerário como um sistema de punição, mas um aparato do Estado que sustenta
percepções ideológicas amplas de raça e de sexismo dentro da sociedade como um
todo. E me desculpe pelo tamanho da minha resposta. Mas essa é uma conversa com
a qual eu poderia falar durante horas" [risos].
Abolicionismo prisional x feminismo
"É interessante observar novamente que, quando
refletimos sobre encarceramento, ou aquilo que chamamos de encarceramento em
massa, nós caracterizamos isso como um problema que afeta apenas os homens. Nós
falhamos ao reconhecer que além dos grandes números, existem mulheres que estão
encarceradas (e eu entendo que aqui no Brasil 2/3 de mulheres que estão
encarceradas são negras, eu estou correta?). Além disso, aquelas que são mais
afetadas pelas políticas de encarceramento são mulheres, independente de
estarem presas. Elas são casadas com esses homens. Eu sei que, nos Estados
Unidos, quando vamos às salas de visitas nas prisões, você descobre um número
enorme de mulheres negras. Mas, em contrapartida, as mulheres negras também tem
sido protagonistas contra esse sistema que está tão saturado pelo racismo. E eu
acho que vocês, que são jovens, neste momento específico da história, tem muita
sorte de serem jovens. Vocês estão experimentando a emergência de uma
consciência que deveria ter sido desenvolvida há muitas gerações atrás. E
este é o papel que as mulheres negras sempre tiveram: lutar contra instituições
de repressão e racistas. Mas, finalmente, estamos reconhecendo que as mulheres
têm capacidade de exercer cargos de liderança -- e eu utilizo a palavra
'mulher' em todas as suas expressões possíveis, incluindo mulheres trans -- e
que essa liberdade tem algo bastante diferenciado da liderança individual do
passado, a liderança individualista carismática -- que, nos Estados Unidos, por
exemplo, podemos falar de Martin Luther King e Malcom X. Mas, de forma alguma,
buscamos desacreditar o papel que ambos tiveram. Afirmar isso é reconhecer
que, neste momento, estamos prontas para novos modelos de liderança:
formações ou modelos de lideranças feministas, não em um indivíduo, mas em
coletivo. E eu estou muito feliz de poder testemunhar o desenvolvimento dessas
outras formas no Brasil, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo."
Rafael Braga e os presos políticos do mundo
"Me parece que, por ser uma pessoa que já foi
prisioneira política e, reconhecendo que só estou aqui falando com vocês muitas
décadas depois do que aconteceu... Eu vejo que a minha liberdade, em parte, só
aconteceu, no porque as pessoas se uniram em âmbito global para exigir isso.
Esses movimentos para libertar presos políticos deveriam ser continuados.
Rafael Braga e outros prisioneiros políticos aqui no Brasil, em Israel, aqueles
que estão aprisionados no continente europeu por estarem engajados na luta
contra a islamofobia e o racismo, e também, ainda hoje ainda a existência
continuada de presos políticos nos Estados Unidos, como Leonard Peltier, um
prisioneiro político de descendência indígena que passou quase quarenta anos
encarcerado; Mumia Abu Jamal, que é o
prisioneiro politico mais conhecido nos EUA atualmente e também o caso de Assata Shakur, que continua
a viver no exílio, em Cuba."
O abolicionismo x naturalização
"É
claro que eu estou ciente que a população carcerária do Brasil é uma das
maiores do mundo, apenas ficando atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Mas
eu também estou ciente de que, assim como no Brasil e outras partes do mundo, a
luta contra a violência de gênero tem sido crucial, principalmente, dentro do
âmbito dos movimentos feministas. Geralmente, pressupõe-se que, para que termos
uma abordagem abolicionista, necessariamente ela seria uma forma de minimizar a
gravidade da violência em um ambiente doméstico -- e é um questionamento válido
porque, afinal de contas, temos lutado por muitas décadas para garantir que a
violência de gênero fosse reconhecida pelo Estado --. Mas, sobre isso, uma
questão é a seguinte: nós podemos mensurar a gravidade ou o valor de uma
acusação, pela quantidade ou intensidade da punição? Outra pergunta a ser feita
pode ser: o quão transformador é o ato de simplesmente mandar um homem que
cometeu violência contra mulher para uma instituição que simplesmente reforça e
produz ainda mais violência? Será que simplesmente essa retribuição vingativa,
seria suficiente? Ou nós estamos realmente comprometidos a purgar a sociedade
deste tipo de violências? O encarceramento nunca resolveu os problemas para
os quais pressupõe-se que seriam as respostas. Não há menos roubos ou
assaltos em função do encarceramento. Não há menos assassinatos porque as
pessoas estão indo para a prisão. Mas um fato é: as pessoas saem da prisão
ainda mais violentas do que eram quando entraram."
Se o Estado utiliza a violência policial para resolver
problemas de maneira punitiva, então ele dissemina a mensagem que a violência
pode ser uma solução para os problemas domésticos também.
"Então,
se nós estamos realmente dedicados a expurgar a violência de gênero de nossas
sociedades, nós não estaremos portando, desejosas de encontrar outras formas de
cobrar essa responsabilidade? Outras formas de reduzir a violência de gênero?
xxx publicou um livro sobre essa questão, que se chama A Justiça Aprisionada: A
mulher negra o sistema carcerário e a justiça. Ela argumenta que nós
conseguimos ganhar o âmbito mais amplo, mas que perdemos os movimentos sociais.
Porque a medida que abraçamos as soluções do encarceramento com soluções para
violência de gênero, é também abraçar processos que levam a uma expansão do
número de encarceramentos no mundo. E dessa forma também abrimos mão do nosso
dever de pensar outras formas para a erradicação da violência de gênero. Mas,
na verdade, são as instituições ao nosso redor que estão tão saturadas com
violência. Se o Estado utiliza a violência policial para resolver problemas
de maneira punitiva, então ele dissemina a mensagem que a violência pode ser
uma solução para os problemas domésticos também. O ponto é que isso é muito
mais complicado do que parece ser. E, então, se pressupomos que simplesmente o
que devemos fazer é encarcerar essas pessoas para eliminar a violência de
gênero, na verdade, estamos colaborando ativamente na continuidade da
reprodução da violência de gênero que estamos tentando erradicar."
Fonte
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