Janaína Calu
Estamos em tempos de luta.
Estamos saindo às ruas para bater de frente com as ofensivas retiradas
de direitos de todos os lados. Mulheres, gays, negros se somam às
multidões para combater a lógica conservadora e fundamentalista que se
perpetua em nosso País.
A Câmara dos Deputados, um dos
pilares do Congresso Nacional Brasileiro, tem sido o espaço de
consideráveis retrocessos, articulando fatos e políticas contrários às
necessidades e lutas do povo, se configurando como cenário da
perseguição e criminalização. São espaços ocupados por políticos
representantes dos setores mais conservadores da sociedade, que
priorizam acima de tudo a imposição de crenças religiosas sobre direitos
e usam pautas muito caras aos movimentos como moeda de troca em
negociatas políticas.
O Projeto de Lei 478, denominado
Estatuto do Nascituro, foi proposto em 2007 pelos deputados Luiz
Bassuma (PT/BA) e Miguel Martini (PHS/MG), e mesmo tendo sofrido
significativas mudanças até a sua aprovação na Comissão de Finanças e
Tributação da Câmara dos Deputados, é uma das maiores expressões atuais
desse retrocesso, juntamente com a proposta de “cura gay”, também
aprovada nos últimos dias.
A proposta de substitutivo ao Estatuto do Nascituro original, feita pela
relatora Deputada Solange Almeida, considera apensos os PLS 489/2007;
1763/2007 e 3748/2008**, modifica diversos termos e se diferencia
principalmente por considerar o artigo 128 (do também limitado) Código
Penal, de 1940, que permite a realização da interrupção da gestação em
casos de risco de vida para a mulher ou em gestação resultante de
estupro (principal diferença entre os dois). Ainda assim, é reflexo da
sobreposição dos direitos do nascituro aos direitos fundamentais das
mulheres, no que diz respeito à liberdade, à igualdade e à saúde sexual e
reprodutiva.
Nascituros não são pessoas, são
vidas em potencial. A proposta apresentada lhes atribui titularidade de
direitos de personalidade (previstos nos artigos 11 a 21 do Código
Civil) a partir da concepção, inexistente até então no ordenamento
jurídico constitucional. Ou seja, trata-se da tentativa de controle
legal da vida sexual e da reprodução através da atribuição de
personalidade jurídica às convicções morais e religiosas, através de uma
criação (por ser até então inexistente).
O projeto se configura como mais
um obstáculo na luta das mulheres pela garantia concreta de seus
direitos sexuais e reprodutivos, que incluem a manifestação pública em
relação à descriminalização e à legalização do aborto e o uso de métodos
contraceptivos como DIU e pílula do dia seguinte; legitima a violência,
a partir do momento que cria uma situação de terrorismo ao estabelecer o
medo de realizar a interrupção da gestação indesejada e ao estabelecer a
medida de pagamento de pensão à criança nascida nessa condição,
evitando que esse debate seja feito com base no papel de proteção do
Estado e nos direitos de cidadania para as mulheres. É uma lei que
atravanca os debates em torno dos temas fundamentais à luta das
mulheres. É o Estado sendo conivente com a violência de gênero.
Desdobram-se desse cenário mais inconstitucionalidades, como o impedimento de pesquisas com células-tronco, ao considerar
nascituro
também os embriões concebidos in vitro, incluindo embriões
excedentários (não implantados no útero e criopreservados). O Supremo
Tribunal Federal decidiu em 2008 que esse tipo de pesquisa não viola o
”direito à vida” do embrião, pois este direito é inexistente, e integra o
direito fundamental à saúde.
Nos últimos tempos, a aprovação
da interrupção de gestações em caso de fetos anencéfalos também pelo STF
e a posição dos Conselhos Federais de Psicologia e Medicina a favor da
legalização do aborto marcaram avanços no tema.
É fundamental que haja uma compreensão de que através da garantia dos
direitos das mulheres, de sua saúde, liberdade e dignidade, os direitos
do nascituro estarão resguardados, desde que feito de maneira a garantir
sua autonomia. Para a concreta realização desses direitos, é
fundamental que nenhuma mulher seja impedida de ser mãe; nenhuma mulher
seja obrigada a ser mãe e que nenhuma mulher seja presa, maltratada ou
torturada (mesmo que psicologicamente) por ter feito aborto. É o dever
do Estado verdadeiramente laico de garanti-los sem basear suas decisões
em crenças religiosas ou interesses privados.
Outro exemplo da ofensiva
fundamentalista será a distribuição de dois milhões de exemplares do
“Manual da Bioética para Jovens”, pela Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de
Janeiro, entre os dias 23 e 28 de julho, com a presença do papa
Francisco. O manual utiliza de linguagem científica para classificar o
uso das pílulas anticoncepcionais e do dia seguinte, além do DIU como
métodos abortivos e condenáveis. A publicação não aborda em nenhum
momento questões relacionadas à prevenção da gravidez e nem mesmo de
doenças sexualmente transmissíveis; além disso, afirma que gestações
decorrentes de estupro devem ser levadas até o fim, garantindo o
nascimento da criança.
O PL agora será encaminhado à
Comissão de Cidadania e Justiça. Na última sexta-feira, um pedido do
Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC/SP) solicita que o projeto seja
também encaminhado à Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM),
presidida por ele mesmo – a maior expressão atual do conservadorismo do
País, que na última semana aprovou o projeto da “cura gay”, que
pressupõe a heterossexualidade como a única sexualidade saudável,
demonstrando mais uma vez o quanto a liberdade sexual ainda é um tabu e
fere princípios conservadores. Nossos corpos são campos de batalha.
Vale ressaltar ainda que a Comissão de Finanças e Tributação conta com
uma composição bastante peculiar, com apenas uma mulher, a Deputada
Erika Kokay, e figuras com histórico bastante interessante, como Paulo
Maluf, João Paulo Cunha, Ronaldo Caiado, e José Otávio Germano, acusado
de integrar a quadrilha que desviou 44 milhões do Detran no governo Yeda
Crusius no Rio Grande do Sul.
Por
todo o exposto acima, os movimentos de mulheres do Brasil seguem
atentos monitorando a tramitação do Projeto de Lei nº 478/2007, que
representa um dos ápices de uma perseguição contínua aos direitos das
mulheres, bem como a discriminação e o conservadorismo com que são
tratados seus direitos no Brasil. De qualquer maneira, é importante que a
sociedade se manifeste sobre o assunto para firmar posições e impedir
um retrocesso nos direitos da mulher. É uma luta contra as tentativas
cotidianas de que as convicções religiosas se sobreponham aos direitos
arduamente conquistados.
É por acreditar que a luta das
mulheres muda o mundo, que o Coletivo Juntas! faz um chamado à
organização e à luta, pela autonomia e liberdade das mulheres. É a hora
de sairmos às ruas, de derrubar Marco Feliciano, de lutar por um Estado
verdadeiramente laico e por uma democracia real!
** PL 489/2007 – Dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências (Deputado Odair Cunha – PT/MG)
PL 1763/2007 – Dispõe sobre a assistência à mãe e ao filho gerado em decorrência de estupro (Deputado Jusmari Oliveira – PSD/BA)
PL 3748/2008 – Autoriza o poder executivo a conceder pensão à mãe que
amamenta a criança nascida de gravidez decorrente de estupro (Deputada
Sueli Vidigal – PDT/ES)
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