A vida me ensinou a ser negra
Fonte O Globo/RJ
AZUETE FOGAÇA
A primeira vez que escrevi sobre a questão racial brasileira foi nos anos 70, em resposta a um texto lido na "Folha de S.Paulo", no qual se comparava a sociedade brasileira com a sul-africana, chegando-se à conclusão que, se o Brasil adotasse algumas medidas semelhantes às do apartheid, a situação dos negros seria melhor do que era então. Quase quarenta anos e muitas lutas depois, é decepcionante, embora não seja surpreendente, observar a recusa da sociedade brasileira a aceitar a existência da desigualdade racial entre nós. A se levar a sério o que esses arautos da igualdade racial falam, o Brasil seria o único país cujo passado escravocrata não teria gerado preconceitos, discriminação e desigualdade com base nas diferenças étnicas e culturais entre brancos e negros.
Impossível, neste caso, não associar, de alguma forma, esta recusa à existência de racismo à negação do Holocausto. No mundo ocidental, o que inclui o Brasil, à absurda tese de Ahmadinejad acertadamente se responde com a História, com os depoimentos dos sobreviventes, com as fotos dos campos de concentração, com os documentos do governo nazista e outros dados que comprovam a tentativa de extermínio; e a mobilização permanente dos judeus é extremamente importante para que tal horror não se repita.
Mas, no caso do racismo brasileiro, aos fatos da História do Brasil que revelam as raízes da questão racial, se reserva o esquecimento; aos dados socioeconômicos que confirmam a discriminação, se reserva a desconfiança, como se fossem dados forjados; aos depoimentos dos negros quanto às humilhações sofridas e às suas reivindicações igualitárias ou reparadoras das injustiças históricas, se reserva o descrédito e a mensagem explícita do chamado "racismo às avessas". É neste contexto que o Dia Nacional da Consciência Negra é, erradamente, visto como uma comemoração exclusiva da população negra, quando deveria ser o dia em que essa sociedade brasileira, que se diz miscigenada e avessa ao racismo, mostraria seu orgulho em ter, na sua formação e desenvolvimento, e ao lado da herança europeia, a vasta e importante contribuição dos negros.
Mas, infelizmente, não é assim.
Ao discurso da igualdade se contrapõem práticas que, na verdade, demonstram uma certa nostalgia do período escravocrata, ou do tempo em que os negros se resignavam com a condição de subalternidade; a mãe-preta e as mucamas com certeza deixaram saudades nos herdeiros da casa-grande, assim como hoje se lamenta a falta das empregadas domésticas que abriam mão de suas vidas próprias para cuidar de várias gerações de uma mesma família.
Ao discurso da miscigenação como evidência da igualdade racial se opõe a constatação de que muito dessa miscigenação se deve a atos de força, ao uso das escravas como objetos sexuais, o que de certa forma sobrevive até hoje, na exploração negativa da imagem da mulher negra e na condenação à miséria que leva à prostituição.
A Consciência Negra significa o conhecimento e a compreensão dessa realidade, e a luta para mudá-la. Significa criar modelos positivos, para que as crianças e os jovens negros acreditem que podem ser professores, engenheiros ou médicos, que não há nada de errado em ter nariz chato e pele escura, que ninguém nasce predestinado a ser criminoso ou prostituta e que é preciso se organizar para enfrentar os mecanismos sociais que perpetuam a desigualdade.
No Brasil, apelar para a miscigenação e se dizer negro é fácil.
Difícil é viver como negro. Quando eu era menina, eu era apenas uma mestiça de pele marrom. A vida me ensinou a ser negra.
AZUETE FOGAÇA é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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