terça-feira, 29 de novembro de 2011

A comida vem dos terreiros

O sagrado que alimenta


Em Pernambuco, terreiros servem de espaço para cultos e também alimentação

Juremeiro Sandro de Jucá ao lado de Dona Dora e suas afilhadas de Jurema em ritual de "obrigação". Foto de Bernardo Dantas/DP.


Além de espaço de culto religioso, terreiros contribuem para a segurança alimentar de comunidades pobres

A comida posta à mesa é farta, variada. Tem um cheiro forte e sinais de um preparo cuidadoso. Há peixe frito, raízes e alimentos feitos com mandioca e milho. Um cântico entoado no salão pequeno, coberto com telhas de amianto, dá início ao ritual. O bairro é Jordão Baixo, Recife. Logo todos fecham os olhos em sinal de concentração. Aos poucos, o sacerdote e as filhas de santo circulam a mesa enquanto degustam as iguarias. A comida também é ofertada às entidades da jurema. O sagrado praticado nos terreiros transborda pelas frestas do espaço religioso, toma as casas da vizinhança e chama o povo para se alimentar. Seja dia de festa ou não. A solidariedade não deixa lugar para a fome na rotina difícil das comunidades pobres da Região Metropolitana do Recife.

A prática cotidiana da partilha de alimentos nos terreiros foi recentemente comprovada pela pesquisa Alimento: direito sagrado, documento publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em parceria com a Unesco, que mostra o papel desses espaços de culto das religiões afro-brasileiras na promoção de segurança alimentar e nutricional das comunidades onde estão localizados. Apesar de historicamente serem caracterizados pela solidariedade, parece que somente agora o governo federal despertou para a importância dessa velha prática dos líderes religiosos: a distribuição de alimentos e a valorização de refeições saudáveis e diversificadas. Os pesquisadores coletaram dados de quatro regiões metropolitanas do país: Recife, Belém, Belo Horizonte e Porto Alegre.

“A jurema com seus frutos, sempre nos alimentou”, canta Sandro de Jucá. Juremeiro da casa Mensageiros da Fé, o mais antigo terreiro de Jordão Baixo, com 44 anos, ele mantém o cachimbo acesso nas mãos como sinal de religiosidade, invocação da espiritualidade. “Procurar o alimento e não ter é considerado algo muito grave por nós. Ao comer, alimentamos o corpo, mas também comungamos com o sagrado. Por isso, não ter a comida atinge não só o físico, mas também o espiritual”, afirma Sandro, que também é babalorixá no candomblé.


Pratos que compõem a culinária da Jurema. Mesa de Jurema. Foto de Bernardo Dantas/DP.


Cozinhas comunitárias

Séculos de atraso na aplicação de políticas públicas junto à população de terreiros, podem ficar para trás com o mapeamento desses espaços. Uma das propostas mais interessantes surgidas a partir do estudo é a implantação de cozinhas comunitárias nessas casas. Ao todo, 92% dos terreiros das quatro regiões metropolitanas pesquisadas têm alguma ação de preparo e distribuição de comidas para as famílias do entorno.

“O estudo revelou que a maior parte das cozinhas são razoavelmente equipadas, mas muitos sentem falta de uma estrutura melhor. A ideia da cozinha comunitária é equipar esses espaços e capacitar quem prepara a comida para a educação alimentar, a exemplo das que já foram destinadas à população quilombola”, destaca Marcos Dal Fabbro, diretor da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do MDS. O plano pode ajudar a melhorar a política de combate à fome do governo federal. Os dados revelam que 31% dos terreiros distribuem alimento para a comunidade. Outros 14,3% repassam o mesmo apenas para pessoas em situação de risco social.


Domínio feminino


Doralice Pereira de Lima é dona Dora, a yalorixá do terreiro Mensageiros da Fé. Ela faz parte de uma legião de mulheres que lidera os terreiros do país. Segundo os dados do MDS, em 55,1% dos casos, são elas quem comandam esses espaços. Quando se fala em cor/raça, 72% dessas pessoas se consideram negras ou pardas, com destaque para a Região Metropolitana do Recife, que tem o maior percentual entre as regiões pesquisadas daqueles que se identificam como pretos ou pardos (82,3%). Em meio ao domínio de mulheres negras ou pardas, um ponto negativo: a RMR tem o maior percentual de lideranças sem escolaridade, com 8,2% desse contigente.

O perfil traçado aponta outros dados importantes. Se nas outras regiões do país é a umbanda que mais ocupa espaço nos terreiros, na RMR a jurema, religião de matriz indígena, lidera o ranking. Das 1.261 casas levantadas pelo estudo, 896 são de juremeiros. A RMR somente perde para a RM de Porto Alegre em número de terreiros. Lá, são 1.342 casas.

Em Pernambuco, outro ponto preocupante se refere ao acesso a políticas públicas de esgotamento sanitário e água potável desses espaços religiosos. Na RMR, o percentual de terreiros com atendimento irregular da rede de água é de 67,7%. Também é a capital pernambucana e seus municípios vizinhos que apresentam os maiores percentuais de fossas rudimentares e sépticas não ligadas à rede coletora, 17,5% e 23,4%, respectivamente. Outros 7,5% despejam o esgoto em valas.


Nada pode ser desperdiçado


Os terreiros de umbanda, candomblé e jurema são espaços conhecidos pela fartura na oferta de alimentação e pela qualidade da comida oferecida. “Uma das características dos terreiros é que os cardápios são direcionados aos orixás e às outras pessoas que frequentam o espaço ou apenas visitam em dias de festa de santo. A ideia é: vou fazer o melhor com o melhor ingrediente. Nada pode ser desperdiçado, tudo deve ser partilhado”, explica o antropólogo e especialista em antropologia da alimentação, Raul Lody.

Juremeiro, Alexandre L’Omi L’Odò conta que as festas mais tradicionais do povo de terreiro em Pernambuco acontecem em dezembro (Iemanjá), em julho (Oxum), em junho (Xangô), em março (mestres) e em agosto (trunqueiros). “Nessas horas, costuma-se servir a população em geral. São dez quilos de feijão, trinta quilos de carne e nove quilos de arroz, por exemplo. O que sobra, é reaproveitado. Nesse caso, essa não é a comida do sagrado”, explica. Em geral, as festas abertas acontecem três dias depois dos rituais internos, quando são feitas as obrigações aos orixás.


Culinária para a melhoria de vida


No terreiro Ilé Axé Ogbom, em Água Fria, no Recife, o preparo de alimentos está ligado à melhoria de vida. Mulheres em situação de risco social aprendem no espaço boas práticas de alimentação em um curso gratuito ministrado pela yabassé Carmem Virgínia e apoiado por uma rede de supermercados.


“Ensinamos o preparo de comidas que são de grande aceitação comercial com foque na culinária afro”, explica Carmem, que aos 7 anos já sabia que assumiria a função de yabassé, a mulher responsável pelo preparo da comida no candomblé. Hoje ela também é consultora em restaurantes de cozinha afro internacional.


Levar a frente ações sociais como essa, no entanto, não é fácil. O estudo revelou que 52,5% das lideranças dos terreiros usam sua própria renda na compra dos alimentos. O problema é que quase metade dessas lideranças (46,9%) recebe apenas até um salário mínimo por mês. “Sem alimento não há desenvolvimento. O homem não pensa, não vive. Em qualquer lugar, o alimento tem que ser sagrado”, alerta o pai de santo do mesmo terreiro, Everaldo de Xangô. É exatamente na RMR que está o menor rendimento das lideranças, com 85,3% delas recebendo até dois salários mínimos.


Pai Everaldo de Xangô e a Iyabassé Carmem Virgínia do Ilé Axé Ogbom. Foto de Bernardo Dantas/DP.

Maria Luiza Santos da Silva, 53 anos, diz que reconhece o valor que o terreiro tem. Vizinha do Ilé Axé Ogbom, ela conta que muitas vezes, precisou pedir ajuda no espaço e nunca foi mal recebida. “Cresci em terreiro e conheço bem a realidade. Nunca bati na porta de pai Everaldo pedindo ajuda para receber um não. Muitas vezes ele me deu feijão, arroz. Ele não dá mais porque não pode”, conta a dona de casa, casada com um biscateiro e mãe de 10 filhos.


No terreiro Mensageiros da Fé, houve tempo em que até médicos eram trazidos para atender a população carente. “Não temos mais suporte financeiro para isso”, comenta Sandro de Jucá, juremeiro e babalorixá. Apesar das dificuldades, ao menos uma vez por mês o grupo distribui sopa aos moradores do bairro. “Quando dá, também oferecemos enxovais a quem nos procura. A fartura vem da espiritualidade”, explica.


Apenas 12% dos terreiros recebem cestas de alimentos do governo federal, segundo a pesquisa, o que ainda representa muito pouco. Na RMR está o maior percentual de terreiros que recebem estas cestas, 31%.


Entrevista com Sônia Lucena



O alimento que sai dos terreiros não tem apenas cheiro de solidariedade. Possui ingredientes nutritivos, como avalia a nutricionista Sônia Lucena, do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar.


Como a senhora analisa a prática de distribuição de alimentos pelos terreiros?


Historicamente, o terreiro não é só espaço religioso. Assim como as igrejas, também fazem m trabalho social. A música produzida por eles, por exemplo, é de ótima qualidade, assim como a comida, que tem um cardápio próprio, de origem afro. Quando vieram seqüestrados e escravizados do continente africano, muitos negros trouxeram sementes escondidas nos seus próprios cabelos e assim conseguiram manter a tradição alimentar ao longo dos séculos.


Podemos afirmar que as comidas de terreiro são saudáveis?


Depende. Se agente fala em consumo de vatapá todo dia, por exemplo, não é indicado porque o óleo de dendê usado no seu preparo depois de levado ao fogo é rico em colesterol. O mesmo vale para o coco, que consumido em excesso traz sobrepeso. É como se alimentar com uma ceia de Natal todos os dias. Se a população fizesse isso, 90% das pessoas estariam obesas.


Segundo a pesquisa, a maioria dos alimentos consumidos nos terreiros da RMR são os caprinos, o frango e o fubá. Além disso, eles também costumam oferecer à comunidade a conhecida mistura de feijão, arroz e carne. O que a senhora acha desses produtos?


A mistura de feijão, arroz e carne é excelente, perfeita. O Conselho Nacional de Nutrição chegou a fazer campanha para estimular esse consumo. O feijão é rico em proteína vegetal e o arroz em aminoácidos. Juntos, dão uma mistura protética muito rica. No entanto, estamos falando de feijão com água e sal e não de feijoada. No caso da galinha criada em casa, qualquer um pode comer, desde que tire o couro, pois é onde está armazenado o colesterol. A carne branca tem menos colesterol que a carne vermelha. No caso do fubá, é o milho beneficiado. É um alimento rico em calorias. A mistura de carne de bode, por exemplo, com produto oriundo do milho também é muito boa, pois o que falta na proteína do milho é complementado pela proteína animal.


Dados da Pesquisa


matéria do jornal Diário de Pernambuco de domingo - 27 de novembro de 2011, caderno Vida Urbana C6 e C7 (duas páginas). Solicitei ao Diário essa matéria, por ter identificado que o lançamento oficial dos resultados da Pesquisa Socioeconômica e Cultural das Comunidades Tradicionais de Terreiro de Recife e Região Metropolitana, realizada pelo MDS- Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, com parceria com a SEPPIR e a UNESCO e realização da entidade Filmes de Quintal, passou quase desapercebido pela mídia local em todos os seus âmbitos.

Horas, como resultados tão importantes e impactantes para a realidade social, cultural e religiosa do nosso Estado, como os dessa pesquisa passariam desapercebidos pela mídia? Resposta simples: o racismo e a intolerância religiosa ainda são fortes aliados no desinteresse por assuntos ligados essencialmente a temas dos povos afro descendentes e indígenas, sobre tudo às religiões de matrizes africanas e indígenas.

Contudo, a jornalista Marcionila Teixeira se interessou pela pauta sugerida e caiu em campo. Realizou um belo trabalho de pesquisa, trazendo ao povo pernambucano essas informações de forma inteligente e esclarecedora. Assim, o Diário de Pernambuco, quebra parte da barreira histórica que sempre colocou assuntos ligados ao povo negro e índio nas páginas policiais.


Digitalizei parte da matéria (fotos, dados e textos). Ainda digitei parte do texto que só saiu na versão impressa do jornal. Portanto, a matéria aqui está totalmente completa e na íngra.

Fico feliz em ter podido contribuir de forma ativa com a visibilização dos resultados dessa pesquisa. Sou de terreiro. Fui pesquisador de campo nesse levantamento de dados e, ao ver esse resultado concreto (impresso) só agradeço à minha mãe Oxum e a Jurema Sagrada e, também ao trabalho que realizo em conjunto com o Quilombo Cultural Malunguinho, que ao longo dos seus 8 anos de existência vem torando possível, de forma coletiva, o fortalecimento crítico e religioso (teológico) do povo de terreiro de pernambucano, sobre tudo o do Povo da Jurema Sagrada e da cultura popular.

Salve a Jurema, salve a fumaça e salve Malunguinho! Sobô Nirê!



Alexandre L'Omi L'OdòQuilombo

Cultural Malunguinhoalexandrelomilodo@gmail.com



Alexandre L'Omi L'Odò
Sacerdote Egbomi L'Osùn e Juremeiro
Estudante de História - UNICAP
Músico/Percussionista - Arte-educador
Pesquisador - Produtor Cultural/Fonográfico
Gestor Cultural e Exotérico Holístico
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