terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A (DES) CONSTRUÇÃO DO SER NEGRO NA ERA MODERNA À PARTIR DO ILUMINISMO

Comunicação apresentada na semana acadêmica na 6ª edição do FECAN


A (DES) CONSTRUÇÃO DO SER NEGRO NA ERA MODERNA À PARTIR DO ILUMINISMO

Luciano Rodrigues Correia

No século XVIII, eclodia na Europa o Iluminismo trazendo consigo novos paradigmas para a humanidade. Segundo LARA (2001; p.68), mais do que um sistema filosófico que culminou no nascimento da ciência moderna, o Iluminismo foi um “movimento de grande excitação emocional”, pois marcou o momento em que pensamento humano libertava-se em definitivo do domínio eclesial e ganhava a amplitude aparentemente ilimitada da razão. A partir de então nasceriam as ciências e as concepções antropocêntricas de mundo, e cresceria uma espécie de euforia racional disposta a desmistificar a existência e estabelecer novas concepções de homem. E este homem concebido pelos intelectuais iluministas, tinha direitos inalienáveis tais como o progresso, a liberdade, a igualdade e a felicidade. Esse conceito de ser humano livre, somado a outros fatores, tais como os interesses do capitalismo nascente, levou os apaixonados intelectuais iluministas a rejeitarem qualquer forma de trabalho escravo. Porém, esses intelectuais eram europeus, brancos, geralmente filhos das mais apuradas elites européias, e tinham arraigadas dentro de si uma visão etnocêntrica de mundo. Às suas reflexões acerca da humanidade, somou-se a busca por meios de atestar racional e cientificamente a excelência da raça branca e sua superioridade frente às demais etnias do mundo. Surge, assim, uma dualidade, a respeito da qual escreve Santos (2002; p.15):

Em alguns momentos temos a conjunção das noções de riqueza, progresso e felicidade, lei natural e direito natural; em outros, o novo conceito de homem e suas determinações causais/ biológicas que entram em conflito com a idéia de progresso; e, por último, a noção de utilidade, tomada como uma justificativa para a servidão ou para as desigualdades sociais. Todos estes aspectos, que ocupavam as mentes do século XVIII, estabeleciam, se não um paradoxo, ao menos uma dualidade (...).

O negro, que desde os primórdios da era colonial era visto como um ser pré- humano, animalesco, diabólico, podendo por isso ser escravizado, é promovido pelos iluministas à condição de gente, a ser humano igual a qualquer outro em espécie, dignidade e direito. Mas, contraditoriamente, os mesmos iluministas, buscando explicações para a cor da pele e a forma de organização sociocultural do negro, tão diferente da européia, desenvolveram uma série de teorias racistas que o colocaram na base do desenvolvimento humano, tanto biológica quanto intelectualmente, estando os europeus no topo desse desenvolvimento. Uma mentalidade evolucionista e hierarquizante ao lado de teorias capitalistas servira de justificativa aos “superiores” europeus para explorar no regime escravocrata a força de trabalho dos “inferiores” negros.

Segundo Santos (2002), o homem moderno se via diante de um dilema: como conciliar a idéia de lei natural, direito natural, progresso, riqueza e felicidade enquanto atributos inalienáveis de todo e qualquer ser humano – o que rompia com o sistema de produção escravista – com os interesses da economia capitalista emergente, uma vez que o escravo, ou ex-escravo teria, enquanto ser humano, os mesmos direitos que qualquer cidadão na nova ordem social? E como encarar o escravo, ou o ex-escravo, como verdadeiramente igual se a ciência emergente (e evolucionista) hierarquizava os homens segundo critérios biológicos que determinavam que os negros fossem menos capazes e inferiores ao europeu? O resultado dessa dualidade foi o desenvolvimento pelo Iluminismo de ideologias que:

(...) inventaram o “ser do negro” fazendo com que se considerasse impossível pensá-lo fora das teias de idéias tecidas ao redor de sua natural inferioridade ou de seu exotismo. Por isso, essa invenção, totalmente datada, apresenta-se como ontologia de um ser que sempre, sem começo nem fim, foi inferior, foi sombra e negatividade. (SANTOS, 2002; p.17)

Assim, o Iluminismo desenvolveu teorias que ao mesmo tempo construíam e destruíam o ser humano negro, condenavam e justificavam a escravidão. Essas teorias configuraram a visão do homem moderno a respeito dos negros e prevaleceram na sociedade. No meio popular, caíram no desconhecimento, mas o seu efeito perverso, o racismo, permaneceu arraigado na mente das pessoas, e o negro continua até os dias atuais sendo vítima de uma série de infundados preconceitos.

Consideração final

Atualmente, muito se tem discutido sobre a pessoa do negro na sociedade e a injustiça que esta etnia vem sofrendo ao longo da História, inicialmente com a escravidão e a demonização de sua cultura e posteriormente com o racismo que há séculos vem fazendo com que o negro seja visto como inferior, símbolo de atraso e marginalização. Busca-se a superação do preconceito racial, mas muitas dessas discussões acabam reduzidas a ecos estéreis de eventos e debates realizados uma vez por ano em datas específicas, como o dia da abolição da escravatura ou da consciência negra.

O negro continua, em muitos aspectos, reduzido ao personagem histórico do período colonial: o excluído, o satânico, o amoral, o pervertido. Embora o negro venha conquistando cada vez mais o seu espaço na sociedade, ainda não é difícil encontrar pessoas que menosprezam outras pelo simples fato de estas serem negras.

A superação de qualquer problema passa pelo conhecimento de suas origens. Tornar conhecido o processo de gênese do preconceito racial ao longo da História é ampliar as possibilidades de uma reflexão mais crítica e eficaz sobre o assunto, capaz de levá-los a construir uma visão igualitária do ser humano negro.

Referências:

LARA, Tiago Adão. A Filosofia Ocidental do Renascimento aos nossos dias. – Petrópolis : Vozes, 2001.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. – São Paulo : Brasiliense, 1994.

SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros. – São Paulo : Educ/Fapesp ; Rio de Janeiro : Pallas, 2002.



[1] Estudante do Curso de Filosofia da faculdade Phênix de Goiânia/GO; E-mail.correialuciano@gmail.com

[2] O termo Iluminismo, conforme explica o autor, provém da utilização da luz como símbolo do movimento. A luz representava a razão humana que deveria iluminar as trevas da ignorância vividas pelo homem dos séculos anteriores, cujo pensamento era controlado pela Religião. (p.69)

[3] O etnocentrismo europeu, também conhecido como eurocentrismo, consiste, segundo a definição de ROCHA (1994; p.07) numa visão de mundo pela qual a Europa é tomada como centro e todos os outros povos do mundo são pensados e julgados através dos seus valores, seus modelos, sua concepção de existência.

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