quarta-feira, 15 de setembro de 2010

TRILHAS DA DIÁSPORA

TRILHAS DA DIÁSPORA
Zulu Araújo
Presidente da Fundação Cultural Palmares / Ministério da Cultura
Um novo cenário apresenta-se no Estado de Pernambuco, a partir de novembro - As trilhas da diáspora na América Latina. Desta vez, aportaremos no lugarejo, chamado Porto de Galinhas, não como milhares de africanos chegaram anos atrás, trazidos clandestinamente como escravos, mas como portadores de uma cultura milenar, que se espalhou e se consolidou pelo mundo afora, mesmo nas condições mais adversas. Sem dúvida alguma, será um momento de reflexão de um passado nada glorioso, mas rico por carregar a tradição de uma cultura viva e palpitante - a cultura negra. Entre sol escaldante, coqueiros e areias, o Brasil encontrar-se-á novamente com a sua mãe-África na grande Festa Literária de Porto de Galinhas (Fliporto). É o passado e o presente convergindo nessas plagas, já experientes de outros eventos reflexivos da questão racial. Pernambuco já deu mostras, no passado, do seu compromisso com as nossas raízes africanas. Foi palco, ainda em 1934, do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, em que se destacou o grande poeta do povo e o homenageado desta festa literária Solano Trindade. O Congresso, organizado por Solano, juntamente com outros intelectuais, como Gilberto Freyre, embora tenha postulado o mito da democracia racial, visível na obra Casa-Grande & Senzala, foi um marco na visão sobre a participação do negro na sociedade brasileira. Pela primeira vez, no Brasil e na América do Sul, realizou-se um evento com a temática racial. A este evento se seguiram muitos outros. E aqui faço uma referência à 2a. Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, realizada em Salvador, em julho de 2006, organizada pelo Ministério das Relações Exteriores e que contou com a participação da Fundação Cultural Palmares na coordenação das atividades culturais e que teve como tema principal "A Diáspora e o Renascimento Africano". O evento reuniu mais de mil pessoas e teve a participação de sete chefes de Estado e de personalidades reconhecidas pelo trabalho em prol da paz e da igualdade, inclusive do cantor Steve Wonder e da queniana Wangari Maathai, primeira mulher africana a receber o Prêmio Nobel da Paz, por sua luta na defesa do desenvolvimento sustentável, da democracia e da paz. Na ocasião, foram discutidas soluções para problemas que atingem os afro-descendentes nos países da diáspora, tendo em vista as populações negras no mundo enfrentarem problemas comuns, como a violência racial, a discriminação no mercado de trabalho, o preconceito às suas matrizes religiosas e as dificuldades no acesso à educação. Os pontos principais do documento final, produzido após cinco dias de debate, apontaram que o crescimento da consciência de uma cidadania africana, com suas repercussões políticas, econômicas e culturais, é essencial para o renascimento africano. Mais do que isso, a diáspora africana é parte fundamental do patrimônio cultural e político do continente.
Diálogo permanente
Desde então, a Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura, vem se empenhando para consolidar as propostas daquela Conferência. Neste sentido, está criando o Observatório Afro-Latino, ferramenta que, como o próprio nome sugere, possibilitará um diálogo mais permanente entre as comunidades negras latino-americanas, com trocas de experiências, intercâmbios e ações comuns visando à compreensão das semelhanças e diferenças da história e dos processos de integração social das comunidades negras nos países latino-americanos. Diante das ações afirmativas que o governo federal vem adotando pela promoção da igualdade racial no Brasil, pode-se afirmar que o povo brasileiro está mais receptivo que em outros tempos com a questão racial. Haja vista a aceitação e o sucesso do sistema de cotas nas universidades públicas. Olhar para o passado e compartilhar memórias é importante para a reconstrução simbólica da presença da cultura negra no Brasil. E o debate sobre as trilhas da diáspora, como proposto para essa Festa Literária, será um momento rico e importante para, mais uma vez, revisitarmos este valoroso patrimônio inscrito nos fazeres e saberes do povo afro-descendente. Não podemos nos furtar de ajustar contas com o passado. Foram quase quatro séculos de escravização, com vidas ceifadas e torturadas no que tem de mais ignóbil na humanidade. Porto de Galinhas será um palco apropriado para isso. A Fundação Palmares compartilha desse desafio, e estará na Fliporto olhando para o futuro, na perspectiva de contribuir com o pensamento intelectual brasileiro e latino-americano em busca de caminhos e espaços que promovam não só a rica e criativa cultura negra na diáspora, como também as ações que levem à plena inserção dos afro-descendentes em suas respectivas sociedades, seja no mercado de trabalho, no ensino superior, na mídia, na cultura etc. Afinal, lá se vão 120 anos que o Brasil rompeu a escravidão (foi o país que mais tardou a abolir a escravatura), porém, ainda hoje assistimos às consequências dessa mazela, que se manifesta por meio das exclusões e discriminações mais variadas. Os testemunhos são os inúmeros artigos, ensaios e manifestos publicados com certo estardalhaço em alguns veículos de comunicação, criticando políticas públicas que visam um pais justo e fraterno e contra o sistema de cotas raciais nas universidades públicas.
Direito à cidadania
O direito à cidadania tem de ser igual para todos. E essa é uma tarefa também de todos, independente de credo, raça ou classe social. Para falar do conceito de cidadania valemo-nos da análise de T. S. Marshall, conhecido sociólogo e autor do livro Cidadania, classe social e status (Zahar Editores). Para ele, cidadania é a articulação dos direitos civis, políticos e sociais, além dos deveres. Segundo a sua conceituação, atualíssima, embora desenvolvida em 1950, os direitos civis correspondem aos direitos relativos à liberdade individual, ou seja, o direito de dispor do próprio corpo, a liberdade de ir e vir, o direito à justiça, entre outros. Os direitos políticos garantem aos cidadãos a participação livre na atividade política. Esses direitos devem garantir ainda a livre expressão do pensamento, a liberdade de religião, de imprensa e de organização. Por fim, os direitos sociais atendem às necessidades humanas básicas. Relacionam-se com o direito a salário, saúde, educação, habitação e alimentação. Deriva-se daí que a cada um desses direitos correspondem um conjunto de instituições, quais sejam, os tribunais, para salvaguardar os direitos civis; as assembléias representativas como fóruns de decisões políticas; e aos direitos sociais relacionam-se os serviços sociais, para garantir proteção contra a miséria, e as escolas, para viabilizar o acesso à educação. Só que não bastam direitos, há também deveres. Ou seja, para Marshall, todo cidadão deveria respeitar o acesso de seus concidadãos aos direitos básicos. Ora, dentre esses direitos, os sociais, que trazem no seu íntimo a educação, têm maior impacto. É o que assistimos hoje com o sistema de cotas nas universidades. E a nossa aposta está em provocar mais e mais os jovens a pensarem na sua identidade e forjarem seu lugar de direito na sociedade brasileira. É princípio republicano e democrático. Então, ao se discutir, pensar e refletir sobre as trilhas da diáspora, é preciso remontar todo o cenário histórico em que se construíram e se constróem este país e a América Latina. É necessário mostrar que apesar de essas trilhas terem sido forjadas no sofrimento, na exploração e na humilhação, ainda assim, o legado civilizatório dessa comunidade é altamente positivo, diria mesmo determinante na formação social e cultural brasileira. Só com os direitos civis, políticos e sociais plenamente assegurados seremos capazes de compartilhar o sonho de liberdade pelo qual lutou Zumbi dos Palmares. É um momento de reflexão e debates que servirá, como disse nosso ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, para "cada vez menos lamentarmos as exclusões e discriminações sofridas pela comunidade negra e, cada vez mais, celebrarmos os avanços alcançados pela sociedade brasileira e pelo Estado para a democracia racial".
Que odé lhe dê muito àsé!!Babá Kytalamy

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