terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Projeto de Lei n° 3.198, de 2000, que “institui o


Comissão Especial Destinada a apreciar e proferir parecer ao Projeto de Lei n° 3.198, de 2000, que “institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências”. SUBSTITUTIVO ADOTADO PELA COMISSÃO




AO PROJETO DE LEI Nº 3.198/00 (De autoria do Deputado Paulo Paim) Institui o Estatuto da Igualdade Racial.
O Congresso Nacional decreta: TÍTULO I Das Disposições Preliminares


Art. 1º Esta lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, para combater a discriminação racial e as desigualdades raciais que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado. § 1º Para efeito deste Estatuto, considera-se discriminação racial toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade  de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública. § 2º Para efeito deste Estatuto, consideram-se desigualdades raciais as situações injustificadas de diferenciação de acesso e gozo de bens, serviços e oportunidades, na esfera pública e privada. § 3º Para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga. § 4º Para efeito deste Estatuto, consideram-se políticas públicas as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais. § 5º Para efeito deste Estatuto, consideram-se ações afirmativas os programas e medidas especiais adotados pelo Estado para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.


Art. 2º É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independente da raça ou cor da pele, o direito à participação na comunidade, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Art. 3º Além das normas constitucionais relativas aos princípios fundamentais, aos direitos e garantias fundamentais, aos direitos sociais, econômicos e culturais, o Estatuto da Igualdade Racial adota como diretriz político-jurídica a reparação, compensação e inclusão das vítimas da desigualdade e a valorização da diversidade racial.

Art. 4º A participação dos afro-brasileiros, em condições de igualdade de oportunidades, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:
I – inclusão da dimensão racial nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;
II – adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;
III – modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades raciais decorrentes do preconceito e da discriminação racial;
IV – promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação racial e às desigualdades raciais em todas as suas manifestações individuais, estruturais e institucionais;
V – eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade racial nas esferas pública e privada;
VI – estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades raciais, inclusive mediante a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos e contratos públicos;
VII – implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades raciais nas esferas da educação, cultura, esporte e lazer, saúde, trabalho, mídia, terras de quilombos, acesso à Justiça, financiamentos públicos, contratação pública de serviços e obras e outras. Parágrafo único. Os programas de ação afirmativa constituir-seão em imediatas iniciativas reparatórias, destinadas a iniciar a correção das distorções e desigualdades raciais derivadas da escravidão e demais práticas discriminatórias racialmente adotadas, na esfera pública e na esfera privada, durante todo o processo de formação social do Brasil e poderão utilizar-se da estipulação de cotas para a consecução de seus objetivos.
Art. 5º Os poderes executivos federal, estaduais, distrital e municipais instituirão, no âmbito de suas esferas de competência, conselhos de defesa da igualdade racial, de caráter permanente e deliberativo, compostos por igual número de representantes de órgãos e entidades públicas e de organizações da sociedade civil representativas da população afro-brasileira. Parágrafo único. A organização dos conselhos será feita por regimento próprio.
Art. 6º Compete aos conselhos de defesa da igualdade racial a formulação, coordenação, supervisão e avaliação das políticas de combate à desigualdade e à discriminação racial.
Art. 7º O Conselho Nacional de Defesa da Igualdade Racial, instituído pelo Poder Executivo Federal, nos termos do art. 4o, promoverá, em conjunto com os Ministros de Estado, as articulações intraministeriais e interministeriais necessárias à implementação da política nacional de combate à desigualdade e à discriminação racial.
Art. 8º O Poder Executivo Federal garantirá a estrutura física, os recursos materiais e humanos e a dotação orçamentária para o adequado funcionamento do Conselho Nacional de Defesa da Igualdade Racial.
Art. 9º O relatório anual dos Ministros de Estado previsto no art. 87, parágrafo único, III, da Constituição Federal, conterá informações sobre as políticas públicas, programas e medidas de ação afirmativa efetivadas no âmbito de sua esfera de competência.

TÍTULO II Dos Direitos Fundamentais

CAPÍTULO I
Do Direito à Saúde
Art. 10. O direito à saúde dos afro-brasileiros será garantido pelo Estado mediante políticas sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e outros agravos. Parágrafo único. O acesso universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde para promoção, proteção e recuperação da saúde da população afro-brasileira será proporcionado pelos governos federal, estaduais, distrital e municipais com ações e serviços em que sejam focalizadas as peculiaridades dessa parcela da população.
Art. 11. O quesito raça/cor será obrigatoriamente introduzido e coletado, de acordo com a autoclassificação, em todos os documentos em uso no Sistema Único de Saúde, tais como:
I – cartões de identificação do SUS;
II – prontuários médicos;
III – fichas de notificação de doenças;
IV – formulários de resultados de exames laboratoriais;
V – inquéritos epidemiológicos;
VI – estudos multicêntricos;
VII – pesquisas básicas, aplicadas e operacionais;
VIII – qualquer outro instrumento que produza informação estatística.
Art. 12. O Ministério da Saúde produzirá, sistematicamente, estatísticas vitais e análises epidemiológicas da morbimortalidade por doenças geneticamente determinadas ou agravadas pelas condições de vida dos afro-brasileiros.
Art. 13. O Poder Executivo incentivará a pesquisa sobre doenças prevalentes na população afro-brasileira, bem como desenvolverá programas de educação e de saúde e campanhas públicas de esclarecimento que promovam a sua prevenção e adequado tratamento. § 1º As doenças prevalentes na população afro-brasileira e os programas mencionados no caput deste artigo serão definidos em regulamento pelo Ministério da Saúde. § 2º As doenças prevalentes na população afro-brasileira e os programas mencionados no caput deste artigo constarão dos currículos dos cursos da área de saúde. § 3º Os órgãos federais de fomento à pesquisa e à pós-graduação criarão, no prazo de doze meses, linhas de pesquisa e programas de estudo sobre a saúde da população afro-brasileira. § 4º O Ministério da Educação promoverá os estudos e as medidas administrativas necessárias à introdução, no prazo de dois anos, de matérias relativas à saúde da população afro-brasileira como temas transversais nos currículos dos cursos de saúde do ensino médio e
superior.
Art. 14. Os estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, que realizam partos, farão exames laboratoriais nos recém-nascidos para diagnóstico de hemoglobinopatias, em especial o traço falciforme e a
anemia falciforme. § 1o O Sistema Único de Saúde deve incorporar o pagamento dos exames citados neste artigo em sua tabela de procedimentos. § 2o Os gestores municipais ou estaduais do Sistema Único de Saúde organizarão serviços de assistência e acompanhamento de pessoas portadoras de traços falciforme e crianças com diagnósticos positivos da anemia falciforme mediante:
I – aconselhamento genético para a comunidade, em especial para os casais que esperam filhos;
II – acompanhamento clínico pré-natal e assistência a partos das gestantes portadoras do traço falciforme;
III – medidas de prevenção de doenças nos portadores de traço falciforme, garantindo vacinação e toda a medicação necessária;
IV – assistência integral e acompanhamento da doença falciforme nas unidades de atendimento ambulatorial especializado;
V – integração na comunidade dos portadores de doença falciforme, suspeitos ou comprovados, a fim de promover, recuperar e manter condições de vida sadia aos portadores de hemoglobinopatias;
VI – realização de levantamento epidemiológico no território sob sua jurisdição, por meio de rastreamento neonatal, para avaliação da magnitude do problema e plano de ação com as respectivas soluções;
VII – cadastramento de portadores do traço falciforme. § 3º O gestor federal do Sistema Único de Saúde propiciará, por meio de ações dos seus órgãos:
I – o incentivo à pesquisa, ao ensino e ao aprimoramento científico e terapêutico na área de hemoglobinopatias;
II – a instituição de estudos epidemiológicos para identificar a magnitude do quadro de portadores de traço falciforme e de doença falciforme no território nacional;
III – a sistematização de procedimentos e a implementação de cooperação técnica com estados e municípios para implantação de diagnósticos e assistência integral e multidisciplinar para os portadores
de doença falciforme;
IV – a inclusão do exame para diagnóstico precoce da doença
falciforme (eletroforese de hemoglobina) na regulamentação do teste
do pezinho em neonatos;
V – o estabelecimento de intercâmbio entre universidades, hospitais, centros de saúde, clínicas e associações de doentes de anemia falciforme visando ao desenvolvimento de pesquisas e instituição de programas de diagnóstico e assistência aos portadores de doenças falciformes;
VI – ações educativas em todos os níveis do sistema de saúde. § 4º O Poder Executivo regulamentará o disposto nos parágrafos acima, no prazo de cento e oitenta dias a contar da publicação desta lei.
Art. 15. O Ministério da Saúde, em articulação com as secretarias estaduais, distrital e municipais de saúde, implantará, no prazo de um ano, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e, em dois anos, o Programa de Saúde da Família, ou programas que lhes venham a suceder, em todas as comunidades de remanescentes de quilombos existentes no País. Parágrafo único. Os moradores das comunidades de remanescentes de quilombos terão acesso preferencial aos processos seletivos para a constituição das equipes dos Programas referidos no caput.
Art. 16. O quesito raça/cor será obrigatoriamente introduzido e coletado, de acordo com a autoclassificação, em todos os documentos em uso nos sistemas de informação da Seguridade Social.
Art. 17. Dê-se ao art. 54 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a seguinte redação:

“Art. 54. O assento de nascimento deverá conter: 2) o sexo e a cor do registrando; ” (NR)

CAPÍTULO II

Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer
Art. 18. A população afro-brasileira tem direito a participar de atividades educacionais, culturais, esportivas e de lazer, adequadas a seus interesses e condições, garantindo sua contribuição para o patrimônio cultural de sua comunidade e da sociedade brasileira. § 1o Os governos federal, estaduais, distrital e municipais devem promover o acesso da população afro-brasileira ao ensino gratuito, às atividades esportivas e de lazer e apoiar a iniciativa de entidades que mantenham espaço para promoção social dos afro-brasileiros. § 2o Nas datas comemorativas de caráter cívico, as instituições de ensino procurarão convidar representantes da população afro-brasileira para debater com os estudantes suas vivências relativas ao tema em comemoração.
Art. 19. Para o perfeito cumprimento do artigo anterior os governos federal, estaduais, distrital e municipais desenvolverão campanhas educativas, inclusive nas escolas, para que a solidariedade aos membros da população afro-brasileira faça parte da cultura de toda a sociedade.
Art. 20. A disciplina “História Geral da África e do Negro no Brasil” integrará obrigatoriamente o currículo do ensino fundamental e médio, público e privado. Parágrafo único. O Ministério da Educação elaborará o programa para a disciplina, considerando os diversos níveis escolares, a fim de orientar a classe docente e as escolas para as adaptações de currículo que se tornarem necessárias.
Art. 21. Os órgãos federais e estaduais de fomento à pesquisa e à pós-graduação criarão linhas de pesquisa e programas de estudo voltados para temas referentes às relações raciais e questões pertinentes à população afro-brasileira.
Art. 22. O Ministério da Educação incentivará as universidades a:
I – apoiar grupos, núcleos e centros de pesquisa, nos diversos programas de pós-graduação, que desenvolvam temáticas de interesse da população afro-brasileira;
II – incorporar nas matrizes curriculares dos cursos de formação de professores temas que incluam valores respeitantes à pluralidade étnica e cultural da sociedade brasileira;
III – desenvolver programas de extensão universitária destinados a aproximar jovens afro-brasileiros de tecnologias avançadas;
IV – estabelecer programas de cooperação técnica com as escolas de educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e ensino técnico para a formação docente baseada em princípios de equidade, de tolerância e de respeito às diferenças raciais.
Art. 23. É obrigatória a inclusão do quesito raça/cor, a ser preenchido de acordo com a autoclassificação, em todo instrumento de coleta de dados do censo escolar promovido pelo Ministério da Educação, para todos os níveis de ensino.

CAPÍTULO III  Do Direito à Liberdade de Consciência e de Crença e ao Livre Exercício dos Cultos Religiosos.
Art. 24. O reconhecimento da liberdade de consciência e de crença dos afro-brasileiros e da dignidade dos cultos e religiões de matriz africana praticados no Brasil deve orientar a ação do Estado em defesa da liberdade de escolha e de manifestação, individual e coletiva, em público e em privado, de filiação religiosa.
Art. 25. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos afro-brasileiros compreende:
I – a prática de cultos e a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade afro-brasileira e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins;
II – a celebração de festividades e cerimônias de acordo com os preceitos de religiões afro-brasileiras;
III – a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas a convicções religiosas afro-brasileiras;
IV – a produção, a aquisição e o uso de artigos e materiais adequados aos costumes e às praticas fundadas na religiosidade afro-brasileira;
V – a produção e a divulgação de publicações relacionadas com o exercício e a difusão da religiosidade afro-brasileira;
VI – a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a manutenção das atividades sociais e religiosas das religiões afro-brasileiras.

CAPÍTULO IV Do Fundo de Promoção da Igualdade Racial

Art. 26. Fica criado o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial para a implementação de políticas públicas que tenham como objetivo promover a igualdade de oportunidades e a inclusão social dos afro-brasileiros, especialmente nas seguintes áreas:
I – promoção da igualdade de oportunidades em educação e emprego;
II – financiamento de pesquisas nas áreas de educação, saúde e emprego voltadas para a melhoria da qualidade de vida da comunidade afro-brasileira;
III – incentivo à criação de programas e veículos de comunicação destinados à divulgação de matérias relacionadas aos interesses da comunidade afro-brasileira;
IV – incentivo à criação e manutenção de microempresas administradas por afro-brasileiros;
V – concessão de bolsas de estudo a afro-brasileiros para a educação fundamental, média, técnica e superior;
VI – apoio a programas e projetos dos governos federal, estaduais, distrital e municipais e de entidades da sociedade civil para a promoção da igualdade de oportunidades para os afro-brasileiros;
VII – apoio a iniciativas em defesa da cultura, memória e tradições africanas e afro-brasileiras.
Art. 27. O Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial será composto de recursos provenientes da Lei Orçamentária da União e de:
I – cento e vinte e cinco milésimos das receitas correntes da União, excluídas as transferências para os estados, o Distrito Federal e os municípios e as receitas tributárias;
II – um por cento do prêmio líquido dos concursos de prognósticos;
III – transferências voluntárias dos estados, do Distrito Federal e dos municípios;
IV – doações voluntárias de particulares;
V – doações de empresas privadas e organizações não-governamentais, nacionais ou internacionais;
VI – doações voluntárias de fundos congêneres, nacionais ou internacionais;
VII – doações de Estados estrangeiros, por meio de convênios,
tratados e acordos internacionais;
VIII – custas judiciais arrecadadas em processos que envolvem
discriminação racial ou racismo;
IX – condenações pecuniárias, nos termos do previsto nos arts. 13 e 20 da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985. Parágrafo único. As doações de empresas, no valor de até um por cento do Imposto de Renda que devam recolher para a Receita Federal, poderão ser deduzidas no ano base da declaração de ajuste anual
do Imposto de Renda, desde que efetuadas até a data da entrega da declaração.
Art. 28. O Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial será administrado pelo Conselho Nacional de Defesa da Igualdade Racial, instituído pelo Poder Executivo Federal, nos termos do art. 4º desta lei.
Art. 29. Entre os afro-brasileiros beneficiários do Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial terão prioridade os que sejam identificados como pretos, negros ou pardos no registro de nascimento e que, de acordo com os critérios que presidem a formulação do Índice de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, se situem abaixo da linha de pobreza.

CAPÍTULO V Da Questão da Terra

Art. 30. O direito à propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, assegurado pelo art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal, se exerce de acordo com o disposto nesta lei. § 1o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins desta lei, os grupos portadores de identidade étnica de preponderância negra, encontráveis em todo o território nacional, identificáveis segundo categorias de autodefinição dos agentes sociais em jogo. § 2o São terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades
dos quilombos todas as terras utilizadas para a garantia de sua reprodução social, econômica, cultural e ambiental.
Art. 31. O procedimento administrativo para o reconhecimento das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos será iniciado mediante requerimento das comunidades interessadas, formulado por escrito ou verbalmente ao órgão do Governo Federal ou estadual competente, devendo os órgãos responsáveis priorizar os remanescentes das comunidades dos quilombos expostos e sujeitos a perderem suas terras. Parágrafo único. Este procedimento poderá ser iniciado de ofício pelos órgãos federais ou estaduais competentes ou a requerimento do Ministério Público Federal ou estaduais ou das entidades representativas dos movimentos sociais negros no Brasil.
Art. 32. O procedimento administrativo de reconhecimento das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos deverá ser realizado no prazo de noventa dias e será constituído de um Relatório Técnico e do decreto de declaração das terras como sendo de remanescentes das comunidades dos quilombos. § 1o Fica assegurado aos remanescentes das comunidade dos quilombos indicar representantes assim como assistentes técnicos para acompanhar todas as fases do procedimento administrativo. No caso, o órgão do Governo Federal poderá solicitar a participação de profissionais de notório conhecimento sobre o tema para subsidiar os procedimentos administrativos de identificação e reconhecimento. § 2o Caberá à Fundação Cultural Palmares oferecer subsídios e prestar assessoramento técnico durante o procedimento administrativo de reconhecimento das terras ocupadas pelos remanescentes dos quilombos.
Art. 33. O Relatório Técnico destinado à orientação do processo administrativo deverá conter:
I – a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos com as respectivas formas de organização e utilização das terras e recursos naturais para a garantia de sua reprodução social, econômica, cultural e ambiental;
II – a caracterização das terras ocupadas e sítios históricos, com as suas respectivas plantas;
III – a circunscrição judiciária ou administrativa em que se encontra a área;
IV – o rol de confinantes e de quem possuir justo título de propriedade na área a ser demarcada e titulada aos remanescentes das comunidades dos quilombos;
V – parecer conclusivo propondo ou não a edição de decreto de reconhecimento das terras ocupadas como sendo dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Parágrafo único. Tratando-se de terras devolutas estaduais e não havendo instrumentos legais e órgão responsável no Estado, caberá ao órgão do Governo Federal realizar todo o procedimento administrativo, remetendo-o posteriormente ao órgão estadual de terras para proceder ao processo de regularização fundiária e titulação.
Art. 34. Concluído o Relatório Técnico e sendo o parecer favorável, deverá ser publicado no Diário Oficial da União (DOU) o decreto de reconhecimento das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, que produzirá os seguintes efeitos legais:
I – reconhece os remanescentes das comunidades dos quilombos como segmentos sociais especialmente protegidos, portadores de identidade étnica, consoante art. 68 do Ato Das Disposições Constitucionais
Transitórias;
II – obriga os escrivães dos cartórios a tornar disponíveis aos remanescentes das comunidades dos quilombos ou seus representantes todos os documentos, registros, atas, livros e contratos relacionados às
terras ocupadas;
III – veda qualquer tipo de remoção dos remanescentes das comunidades dos quilombos, salvo catástrofe ou epidemia que ponha em risco a comunidade ou relevante interesse nacional devidamente comprovado, desde que ouvidas as comunidades atingidas e autorizado pelo Congresso Nacional. Parágrafo único. Na hipótese de remoção, o Governo Federal deverá assentar os remanescentes das comunidades dos quilombos em área próxima com as mesmas características, bem como indenizar previamente a propriedade da terra, os recursos naturais utilizados, os cultivos e as benfeitorias, os sítios arqueológicos e os bens imateriais.
Art. 35. Publicado o decreto de reconhecimento das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, deverá ser realizado o processo de regularização fundiária, que se constituirá de demarcação e titulação das terras ocupadas aos remanescentes, nos termos da legislação fundiária vigente.
Parágrafo único. Compete aos órgãos dos governos federal ou estaduais prestarem assistência jurídica aos remanescentes das comunidades dos quilombos, propondo as respectivas ações na Justiça quando for necessário.
Art. 36. Havendo título de propriedade na área a ser demarcada e titulada, caberá aos órgãos competentes promover a respectiva indenização ou desapropriação para fins de caráter étnico, nos termos da Lei no 8.629, de 25 de fevereiro de 1993.
Art. 37. O órgão do Governo Federal competente ou o órgão estadual, concluído o processo de regularização fundiária, deverá expedir os respectivos títulos de propriedade aos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Art. 38. É facultado aos órgãos do Governo Federal, para o cumprimento das disposições contidas nesta lei, celebrar convênios, contratos, acordos ou instrumentos similares de cooperação com órgãos públicos ou instituições privadas.
Art. 39. Os trabalhos de identificação e reconhecimento realizados anteriormente à promulgação desta lei poderão instruir os procedimentos administrativos do decreto.
Art. 40. Para o cumprimento do disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e da presente lei, os governos federal, distrital e estaduais elaborarão e desenvolverão políticas públicas especiais voltadas para o desenvolvimento sustentável dos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Parágrafo único. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e a Fundação Cultural Palmares, ou os órgãos que lhes venham a suceder, serão responsáveis pela execução de políticas públicas especiais voltadas para o desenvolvimento sustentável das comunidades dos quilombos.
Art. 41. Os remanescentes das comunidades dos quilombos poderão se beneficiar do Fundo para a Promoção da Igualdade Racial previsto nesta lei.

CAPÍTULO VI Do Mercado de Trabalho

Art. 42. A implementação de políticas voltadas para a inclusão de afro-brasileiros no mercado de trabalho será de responsabilidade dos governos federal, estaduais, distrital e municipais, observando-se:
I – o instituído neste Estatuto;
II – os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1968);
III – os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção no 111, de 1958, da OIT – Organização Internacional do Trabalho, que trata da Discriminação no Emprego e na Profissão;
IV – a Declaração e o Plano de Ação emanados da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas.
Art. 43. Os governos federal, estaduais, distrital e municipais promoverão ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para os afro-brasileiros, realizarão contratação preferencial de afro-brasileiros no setor público e estimularão a adoção de medidas similares pelas empresas privadas. § 1° A igualdade de oportunidades será lograda mediante a adoção de políticas e programas de formação profissional, de emprego e de geração de renda voltados para os afro-brasileiros. § 2° A contratação preferencial na esfera da administração pública far-se-á por meio de normas já estabelecidas e/ou a serem
estabelecidas por atos administrativos. § 3° Os governos federal, estaduais, distrital e municipais estimularão, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado.
Art. 44. O Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador – CODEFAT formulará e destinará recursos próprios para políticas, programas e projetos voltados para a inclusão de afro-brasileiros no mercado de trabalho.
Art. 45. As ações de emprego e renda contemplam o estímulo à promoção de empresários afro-brasileiros por meio de financiamento para a constituição e ampliação de pequenas e médias empresas e programas de geração de renda.
Art. 46. A contratação preferencial na esfera da administração pública federal, que deverá ser implementada em um prazo de 12 meses, obedecerá às seguintes diretrizes:
I – para a aquisição de bens e serviços pelo setor público, assim como nas transferências e nos contratos de prestação de serviços técnicos com empresas nacionais e internacionais e organismos internacionais,
será exigida a adoção de programas de promoção de igualdade racial para as empresas que se beneficiem de incentivos governamentais e/ou sejam fornecedoras de bens e serviços;
II – o preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS da administração pública centralizada e descentralizada observará a meta inicial de vinte por cento de afro-brasileiros, que será ampliada gradativamente até lograr a correspondência com a estrutura da distribuição racial nacional e/ou, quando for o caso, estadual, observados os dados demográficos oficiais.
Art. 47. O § 2º do art. 45 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 45 § 2º No caso de empate entre duas ou mais propostas, e após obedecido o disposto no § 2o do art. 3º desta lei, a classificação dará precedência ao licitante que tiver programa de promoção de igualdade racial em estágio mais avançado de implementação; persistindo o empate, ela será feita, obrigatoriamente, por sorteio, em ato público, para o qual todos os licitantes serão convocados, vedado qualquer outro processo.  (NR)
Art. 48. A inclusão do quesito cor/raça, a ser coletado de acordo com a autoclassificação, será obrigatória em todos os registros administrativos direcionados aos empregadores e aos trabalhadores do setor privado e do setor público, tais como:
I – formulários de admissão e demissão no emprego;
II – formulários de acidente de trabalho;
III – instrumentos administrativos do SINE – Sistema Nacional de Emprego, ou órgão que lhe venha a suceder;
IV – Relação Anual de Informações Sociais – RAIS, ou registro que lhe venha a suceder;
V – formulários da Previdência Social;
VI – todos os inquéritos do IBGE ou de órgão que lhe venha a suceder.
Art. 49. Os arts. 3o e 4o da Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passam a vigorar acrescidos dos seguintes parágrafos:
Art. 3º Pena: Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor ou de origem nacional ou étnica obstar a promoção ou a concessão de qualquer outro benefício decorrente da relação funcional. (NR) ”
“Art. 4º Pena: § 1o Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes de preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica:
I – deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores;
II – impedir ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional;
III – proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. § 2o Ficará sujeito à pena de multa e prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial quem, em anúncios ou qualquer outra forma de captação de trabalhadores, exigir boa aparência do candidato ou a respectiva fotografia no currículo, com vistas à seleção para ingresso no emprego. (NR)”
Art. 50. Os arts. 3o e 4o da Lei no 9.029, de 13 de abril de 1995, passam a vigorar com as seguintes alterações:“Art. 3º Sem prejuízo do prescrito no artigo anterior e dos dispositivos legais que tipificam os crimes resultantes de preconceito de etnia, raça e/ou cor, as infrações do disposto nesta lei são passíveis das seguintes cominações:
I – 
II –  (NR)”
“Art. 4o O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos moldes desta lei, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre:
I – ;
II – ” (NR)
Art. 51. As empresas contratantes ficam proibidas de exigir, juntamente com o currículo profissional, a fotografia do candidato a emprego.

CAPÍTULO VII  Do Sistema de Cotas

Art. 52. Fica estabelecida a cota mínima de vinte por cento para a população afro-brasileira no preenchimento das vagas relativas:
I – aos concursos para investidura em cargos e empregos públicos na administração pública federal, estadual, distrital e municipal, direta e indireta;
II – aos cursos de graduação em todas as instituições de educação superior do território nacional;
III – aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES). Parágrafo único. Na inscrição, o candidato declara enquadrar-se nas regras asseguradas na presente lei.
Art. 53. Acrescente-se ao art. 10 da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, o § 3o-A, com a seguinte redação: “Art. 10. § 3o-A. Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento para candidaturas de afrobrasileiros.
(NR)”
Art. 54. As empresas com mais de 20 empregados manterão uma
cota de no mínimo vinte por cento para trabalhadores afro-brasileiros.

CAPÍTULO VIII  Dos Meios de Comunicação

Art. 55. A produção veiculada pelos órgãos de comunicação valorizará a herança cultural e a participação dos afro-brasileiros na história do País.
Art. 56. Os filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão deverão apresentar imagens de pessoas afro-brasileiras em proporção não inferior a vinte por cento do número total de atores e figurantes. Parágrafo único. Para a determinação da proporção de que trata este artigo será considerada a totalidade dos programas veiculados entre a abertura e o encerramento da programação diária.
Art. 57. As peças publicitárias destinadas à veiculação nas emissoras de televisão e em salas cinematográficas deverão apresentar imagens de pessoas afro-brasileiras em proporção não inferior a vinte
por cento do número total de atores e figurantes.
Art. 58. Os órgãos e entidades da administração pública direta, autárquica ou fundacional, as empresas públicas e as sociedades de economia mista ficam obrigados a incluir cláusulas de participação de artistas afro-brasileiros, em proporção não inferior a vinte por cento do número total de artistas e figurantes, nos contratos de realização de filmes, programas ou quaisquer outras peças de caráter publicitário. § 1o Os órgãos e entidades de que trata este artigo incluirão, nas especificações para contratação de serviços de consultoria, conceituação, produção e realização de filmes, programas ou peças publicitárias, a obrigatoriedade da prática de iguais oportunidades de emprego para as pessoas relacionadas com o projeto ou serviço contratado. § 2o Entende-se por prática de iguais oportunidades de emprego o conjunto de medidas sistemáticas executadas com a finalidade de garantir a diversidade de raça, sexo e idade na equipe vinculada ao projeto ou serviço contratado. § 3o A autoridade contratante poderá, se considerar necessário
para garantir a prática de iguais oportunidades de emprego, requerer auditoria e expedição de certificado por órgão do Poder Público.
Art. 59. A desobediência às disposições desta lei constitui infração sujeita à pena de multa e prestação de serviço à comunidade, através de atividades de promoção da igualdade racial.
Art. 60. A Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo: “Art. 20-A. Tornar disponível na rede Internet, ou em qualquer rede de computadores destinada ao acesso público, informações ou mensagens que induzam ou incitem a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. Parágrafo único. O juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito judicial, sob pena de desobediência, a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação em rede de computador.”

CAPÍTULO IX  Das Ouvidorias Permanentes nas Casas Legislativas

Art. 61. O Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas estaduais, a Câmara Legislativa do Distrito Federal e as Câmaras Municipais instituirão Ouvidorias Permanentes em Defesa da Igualdade Racial, como órgãos pluripartidários, para receber e investigar denúncias de preconceito e discriminação com base em etnia, raça e ou cor e acompanhar a implementação de medidas para a promoção da igualdade racial. Parágrafo único. Cada Casa Legislativa organizará sua Ouvidoria Permanente em Defesa da Igualdade Racial na forma prevista pelo seu Regimento Interno.

CAPÍTULO X  Do Acesso à Justiça

Art. 62. É garantido às vítimas de discriminação racial o acesso à Ouvidoria Permanente do Congresso Nacional, à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário em todas as suas instâncias, para a garantia do cumprimento de seus direitos.
Art. 63. O Conselho Nacional de Defesa da Igualdade Racial constituirá Grupo de Trabalho para a elaboração de Programa Especial de Acesso à Justiça para a população afro-brasileira. § 1o O Grupo de Trabalho contará com a participação de estudiosos do funcionamento do Poder Judiciário e de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, de associações de magistrados e de associações do Ministério Público, conforme determinações do Conselho Nacional de Defesa da Igualdade Racial. § 2o O Programa Especial de Acesso à Justiça para a população
afro-brasileira, entre outras medidas, contemplará:
I – a inclusão da temática da discriminação racial e desigualdades raciais no processo de formação profissional das carreiras jurídicas da Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública;
II – a criação de varas especializadas para o julgamento das demandas criminais e cíveis originadas de legislação antidiscriminatória e promocional da igualdade racial;
III – a adoção de estruturas institucionais adequadas à operacionalização das propostas e medidas nele previstas.
Art. 64. Para a apreciação judicial das lesões e ameaças de lesão aos interesses da população afro-brasileira decorrentes de situações de desigualdade racial, recorrer-se-á à ação civil pública, disciplinada na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985. § 1o Nas ações referidas neste artigo prevalecerão:
I – o critério de responsabilidade objetiva;
II – a inversão do ônus da prova, cabendo aos acionados provar a adoção de procedimentos e práticas que asseguram o tratamento isonômico sob o enfoque racial. § 2o As condenações pecuniárias e multas decorrentes das ações tratadas neste artigo serão destinadas ao Fundo de Promoção da Igualdade Racial.

TÍTULO III Das Disposições Finais

Art. 65. As medidas instituídas nesta lei não excluem outras em prol da população afro-brasileira que tenham sido ou venham a ser adotadas no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios.
Art. 66. O Poder Público criará instrumentos para aferir a eficácia social das medidas previstas nesta lei e efetuará seu monitoramento constante, com a emissão de relatórios periódicos.
Art.67. Esta lei entra em vigor noventa dias após sua publicação. Sala da Comissão, 3 de dezembro de 2002. Justificação.  A nossa intenção ao apresentar o Estatuto da Igualdade Racial em defesa dos que são discriminados por etnia, raça e/ou por cor é fomentar o debate contra o preconceito racial tão presente em nosso País. Sabemos que esta proposta poderá ser questionada e, conseqüentemente, aperfeiçoada para que no dia de sua aprovação se torne um forte instrumento de combate ao preconceito racial e favorável às ações afirmativas em favor dos discriminados. As idéias até aqui introduzidas são fruto da construção feita em grande parte pelo movimento negro. Isto não quer dizer que outros brasileiros, também discriminados por raça, cor, etnia, procedência, origem, sexo e religião não possam introduzir novos conceitos que contribuam para o combate ao preconceito. Durante os quinhentos anos de história do Brasil ficamos atrelados aos grilhões da discriminação e do preconceito racial. Milhares de pessoas pagaram, primeiro com a vida e depois com uma história de marginalização e miséria para que este hediondo sistema de dominação pela discriminação racial fosse combatido. Nas escolas recebemos verdades prontas, conceitos acabados,
estereotipados pela ótica ideológica utilizada pelos grupos dominantes para manter seus privilégios, seu poder, os benefícios que gozam, as oportunidades culturais de que usufruem. É na necessidade de manter
esses privilégios que a ideologia da discriminação se perpetua e a qualquer momento, a qualquer risco de subversão desse sistema ativa- se, em ritmo e volume acelerados, a produção ideológica que garanta a sua manutenção. Propomos o sistema de cotas para justamente minimizar os efeitos nocivos do preconceito sobre as populações discriminadas. Sabemos que nossas universidades e nosso mercado de trabalho são frequentados por uma maioria esmagadora de brancos. O sistema de cotas percentualiza as oportunidades, pois quando há a quantificação do número de beneficiários se busca uma política de igualdade de oportunidades, já que neste País não existe essa igualdade. Um exemplo disso são os 20% das vagas dos candidatos dos partidos políticos que são destinados às mulheres. Temos consciência de que esse sistema tem como objetivo fixar um direito. A educação e o mercado de trabalho no Brasil, assim como os espaços políticos são fundamentais para a busca da cidadania. Estudos realizados pelo IBGE mostram que os brancos recebem salários superiores aos recebidos pelos negros no desempenho das mesmas funções, e que o índice de desemprego desses também é maior. No campo da educação o analfabetismo, a repetência, a evasão escolar são consideravelmente mais acentuados para os negros. O Brasil está muito longe de ser um país onde todos sejam iguais. Os círculos fechados da elite precisam ser quebrados e por que não criar a médio prazo espaços intelectuais, econômicos e políticos menos homogêneos racialmente. Sabemos que o sistema de cotas sofrerá profundas discussões, assim como aconteceu nos Estados Unidos onde as argumentações vão desde a temporalidade do sistema até conceitos de livre promoção do indivíduo, de sua liberdade, vontade e competência, transformando assim o estado de direito em um administrador de interesses de grupos e corporações. Essa justificativa para não adotarmos as ações afirmativas no Brasil poderiam ter consistência se todos tivessem as mesmas oportunidades. Na realidade a sociedade não é igual e tratar pessoas de fato desiguais como iguais só amplia a distância inicial entre elas, mascarando e justificando a perpetuação de iniqüidades. Além do sistema de cotas nas universidades e no trabalho, queremos que todos os livros referentes à participação do negro no Brasil sejam reescritos, a exemplo do que Nelson Mandela fez na África do Sul. Para tanto, reintroduzimos neste projeto o PL no 678/88, de nossa autoria, aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados e que no Senado recebeu o no 56/88 e, por incrível que pareça, foi arquivado naquela Casa sem discussão. A história da participação dos afrobrasileiros na formação do povo brasileiro foi distorcida e, por este motivo, deve ser reescrita. Não passou desapercebido que o sistema de cotas por nós introduzido na questão eleitoral foi um fato inovador pois é inadmissível que o negro, que representa no mínimo 50% da população, praticamente não exista, nem no Legislativo e nem no Executivo, o que significa uma despreocupação dos partidos com essa importante parcela da população brasileira. Do mesmo modo reiteramos com consistência a idéia da compensação econômica aos remanescentes dos quilombos por injustiças sofridas. Também introduzimos aqui a questão da titularidade da terra aos descendentes dos quilombolas. Nesta questão específica da terra a redação aqui dada é fruto de um projeto construído pela ex-Senadora Benedita da Silva. Essa compensação não recai sobre um novo conflito, é uma questão de justiça, que com certeza líderes religiosos, intelectuais e a sociedade como um todo aprovarão. Não queremos a cultura afro-brasileira vista, sentida e experimentada
somente nas práticas religiosas, música ou alimentação. Queremos a cultura do negro inserida nas escolas, no mercado de trabalho, nas universidades, pois o negro faz parte do povo brasileiro. Cultivar as raízes da nossa formação histórica evidentes na diversificação da composição étnica do povo é o caminho mais seguro para garantirmos a afirmação de nossa identidade nacional e preservarmos os valores culturais que conferem autenticidade e singularidade ao nosso País. É imprescindível que haja união entre as pessoas, povos, nacionalidades e culturas. Todos os esforços para combater as barreiras discriminatórias são subsídios concretos para a formação de um novo ser humano, capaz de elevar-se à altura de seu destino e evitar destruir a si mesmo. Com esta argumentação podemos afirmar que durante toda a nossa vida recebemos as verdades de terceiros. A primeira verdade que recebemos é a da infância, quando sentimos, mas não questionamos. A segunda verdade é a da revelação que dói, que choca, é a percepção de que nos impuseram uma grande mentira. A terceira verdade é aquela que está acompanhada da dignidade humana, é a verdade da transformação. É por esta terceira verdade que aqui estamos, queremos transformar a realidade em que sempre viveram os que sofrem discriminação. Acreditamos que a transformação da sociedade começa com uma legislação que defenda os direitos à cidadania igualitária sem qualquer subterfúgio e vá além dela, vá ao coração de cada cidadão na escola, nas universidades, no mercado de trabalho, nas ruas, na sociedade como um todo. Como instrumento de convencimento dos meus pares para aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceitos e discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, reproduzo nesta justificação a poesia escrita por Banduxe Adinimodó: “Quando eu por aqui passei, na época em que seus ancestrais tentavam construir esta pátria, Encontrei índios sendo massacrados, Portugueses degredados e negros exportados. Vi sangue, suor e lágrimas de três raças se destruindo, Mas vi uma nação se construindo. Vi aquele sentimento que faz de um rincão, uma nação, Mas vi o sangue do negro ser derramado em vão, Nas senzalas, mocambos, quilombos, favelas e prisão. Agora vejo os filhos de Zumbi, afilhados de Tiradentes, De uma pátria pretendentes serem enganados, Da terra expoliados, vítimas de ardentes, do poder pretendentes, Fazendeiros bajulados. Aí, eu pergunto – Valeu a pena a abolição? Por que ainda não aboliram esta desumana servidão? Não será pois desta maneira que teremos um Brasil definitivo E sim uma convulsão, vez queJamais vamos morrer agora, Pois nosso coração arde de vontade E exige que a vida voe.”Esta poesia reflete a história do conjunto de raças que formam opovo brasileiro, um povo discriminado no passado e no presente e seperpetuará no futuro se nada fizermos. Paulo Paim


www.senado.gov.br/paulopaim

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