quarta-feira, 17 de março de 2010

Políticas Públicas de Eliminação da Identidade Mestiça

Políticas Públicas de Eliminação da Identidade Mestiça
e Sistemas Classificatórios de Cor, Raça e Etnia


Excelentíssimos Senhores Ministros,



As observações que faremos resultam do trato desde 2001, com idéias e práticas de políticas públicas étnicas e raciais no Brasil e em outros países. Esta atuação nos faz ter a convicção de que o Sistema de Cotas para Negros da UnB não é, a rigor, medida de ação afirmativa. Ele não visa combater discriminação racial, de cor, ou de origem, nem corrigir efeitos de discriminações passadas, nem assegurar os direitos humanos e as liberdades fundamentais de grupos étnicos e raciais, como exige a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial para distinguir uma medida especial de uma medida de discriminação racial.

O Sistema de Cotas para Negros da Universidade de Brasília, inversamente do que defendia Darcy Ribeiro, o idealizador, fundador e primeiro reitor da UnB, tem por base uma elaborada ideologia de supremacismo racial que visa à eliminação política e ideológica da identidade mestiça brasileira e a absorção dos mulatos, dos caboclos, dos cafuzos e de outros pardos pela identidade negra, a fim de produzir uma população composta exclusivamente por negros, brancos e indígenas.

Exige a UnB que “Para concorrer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato deverá ser de cor preta ou parda, declarar-se negro e optar pelo sistema de cotas”. Assim, as cotas da UnB não se destinam a proteger pretos e pardos em si; pretos e pardos que se autodeclarem mestiços, mulatos, caboclos são excluídos do sistema de cotas da UnB; também são excluídos aqueles afrodescendentes que se autodeclaram negros, mas são de cor branca.

Para que estas cotas fossem medidas de ação afirmativa seria necessário que se identificar como negro fosse causa de discriminação racial, mas ao excluir os autodeclarados negros de cor branca das cotas a própria UnB tacitamente reconhece que somente identificar- se como negro não expõe uma pessoa a discriminações raciais no Brasil, como ocorre em outros países. Do contrário, a UnB estaria também os discriminando.

Elas também não visam a corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, pois neste caso o segmento beneficiado seria em função da ancestralidade e não da cor e muito menos da autodeclaração.

Por que, então, a UnB, em vez de estabelecer um sistema de ação afirmativa para todos os pretos e pardos, decidiu excluir os pretos e pardos que não se identificam como negros? A história do racismo e, especificamente, da mestiçofobia, elucida as motivações que conduziram ao atual projeto racial para o povo brasileiro implementado pelo governo federal.

A UnB não foi a primeira universidade brasileira a veicular idéias e a defender políticas públicas de base racial no Brasil. No séc. XIX e até metade do séc. XX, em diversas universidades do país e do estrangeiro, idéias racistas faziam parte do conteúdo lecionado. Refletindo o poder da autoridade científica que as universidades possuem, muitos, inclusive governantes e legisladores, acreditavam que havia raças superiores em inteligência, em resistência física, em aptidões morais. Ensinavam, também, que seria um prejuízo para uma nação formada por pessoas de suposta raça superior gerar filhos mestiços com pessoas de raça inferior.

Alguns racistas defendiam que o mestiço seria um ser intermediário entre a raça superior e a inferior; outros que seria inferior à raça inferior. Esta última corrente racista afirmava que o mestiço, diferentemente das raças superiores e inferiores, e por não ser uma raça, seria um ser anormal, não adaptado a qualquer ambiente, propenso a doenças físicas e psicológicas, destituído das melhores qualidades das raças que lhe deram origem e tanto pior quanto mais se diferenciasse delas.

No Brasil, com grande e crescente população mestiça, isto foi visto pelo racismo acadêmico como um problema que comprometeria as possibilidades de progresso do país. Nina Rodrigues defendia políticas criminais diferenciadas racialmente. Sylvio Romero e Oliveira Viana defendiam o desaparecimento gradual dos mestiços pelo branqueamento. O racismo teve também grandes opositores. Intelectuais como Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre defenderam que a miscigenação não era um problema para o Brasil, mas uma vantagem que, entre outras, formava a identidade nacional e protegia a Nação de conflitos raciais e étnicos.

Em outros países, os ideólogos do racismo forneceram o material para os discursos políticos que na Alemanha levaram os nazistas ao poder e mestiços a campos de concentração e a cirurgias de esterilização. Na Austrália, mestiços foram separados de suas mães aborígenes. Na África do Sul, foram segregados pelo apartheid.

Nos EUA, a partir do final do séc. XIX, junto com leis proibindo casamentos inter-raciais, organizações racistas como a Ku Klux Klan conseguiram paulatinamente impor, inclusive legalmente, uma inovação, a Regra da Única Gota (One Drop Rule), pela qual uma gota de sangue africano faria com que uma pessoa fosse classificada como Negro (palavra que também existe no vocabulário inglês). No censo dos EUA até 1920 não havia a categoria Negro. Desde 1850, havia as categorias Black (ou seja, preto) e Mulatto. No censo de 1930, porém, pela regra da única gota, pretos e mulatos tiveram apenas a opção Negro.

Estas normas visavam delimitar espaços de poder racial, daí a necessidade de eliminar politicamente e também ideologicamente o mestiço e a mestiçagem. Apenas em 1970, após o assassinato de Martin Luther King, o termo Black voltou ao censo; no censo de 2000, os mestiços conseguiram voltar a ser contados (e outra vez no censo dos EUA deste ano).

No Brasil, seu primeiro censo oficial, de 1872, tinha para a variável “cor/raça” as opções ‘branca’, ‘preta’, ‘parda’ e ‘cabocla’; no censo de 1890, a opção ‘parda’ foi substituída por ‘mestiça’, retornando o termo ‘parda’ em todos os censos seguintes que tiveram o quesito “cor/raça”, passando a incluir também os mestiços caboclos. Assim, o censo brasileiro sempre trouxe um espaço para a expressão da identidade mestiça. As opções ‘preta’ e ‘branca’ sempre constaram nos quesitos “cor/raça” dos censos, os quais nunca trouxeram a opção ‘negra’. Somar pretos e pardos e incluí-los numa categoria ‘negra’ tornou-se, porém, uma reivindicação de movimentos negros, inclusive junto ao IBGE.

Com o fim da II Guerra Mundial, a idéia de raça foi perdendo credibilidade acadêmica. No Brasil, porém, os mestiços passaram também a ser vistos como um problema ideológico e político. O sociólogo Florestan Fernandes, da Universidade de São Paulo (USP), afirmava que “dentro da população negra e mestiça não há homogeneidade. Criar esta homogeneidade é um problema preliminarmente político”.

Caberia levar o mulato “a aceitar a sua condição de negro”. E questionava, “(…) Como fazer para reeducar o mulato, como levá-lo a sair de um comportamento egoístico e individualista?” Antes haveria uma raça superior e uma inferior e os mestiços deveriam ser miscigenados até não se diferenciarem de uma delas, a branca; agora haveria uma raça opressora e uma oprimida e os mestiços deveriam ser reeducados para identificarem- se com uma delas, a negra.

O antropólogo Kabengele Munanga, da USP, sobre o mesmo tema, assim se expressou: “Se no plano biológico, a ambigüidade dos ‘mulatos’ é uma fatalidade da qual não podem escapar, no plano social e político-ideoló gico, eles não podem permanecer ‘um’ e ‘outro’, ‘branco’ e ‘negro’”, e acrescentou, “Construir a identidade ‘mestiça’ ou ‘mulata’ que incluiria ‘um’ e ‘outro’, ou excluiria ‘um’ e ‘outro’, é considerado por mestiços conscientes e politicamente mobilizados como uma aberração política e ideológica, pois supõe uma atitude de indiferença e de neutralidade perante o processo de construção de uma sociedade democrática”, (na Introdução do livro “Mulato negro-não-negro e/ou branco-não-branco”, de Eneida de Almeida dos Reis).

Este modo de ver o mestiço, porém, não é apenas marginalizador e moralmente ofensivo; ele também leva a um preconceito de caráter biológico: seria normal o branco ter identidade branca, o negro identidade negra, o índio identidade indígena, mas não o mestiço ter identidade mestiça; ele seria um ser incompleto, necessitado da identidade negra. Chegam a atribuir ao mestiço um risco de problemas psicológicos em função de uma suposta ambivalência.

A própria mestiçagem, que em regra ocorreu e ocorre no Brasil de forma harmoniosa, também passou a ser apresentada de forma equivocada e negativa. Afirma um etnólogo cubano com livro recentemente publicado no Brasil: “o mestiço surge nas sociedades violentadas e complexadas. Ou seja, é a inseminação violenta das fêmeas do grupo dominado pelo macho do grupo dominante e a eliminação física dos machos do grupo dominado-conquistad o”. Ou seja, estão ensinando o mestiço a ter vergonha de suas origens, a negar o sangue de seu pai ou de sua mãe.

Estas depreciações se reproduzem em agressões morais fora do meio acadêmico.

Também se refletiram no recente decreto do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), assinado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, que determina a inclusão dos mulatos e dos pardos na categoria negra. Nisto não há inovação: pelo Alvará Régio de 4 de abril de 1755, o rei de Portugal, D. José I, proibiu o emprego do termo caboclo para os filhos mestiços de portugueses e indígenas e nós desaparecemos por décadas dos documentos oficiais.

Estes discursos visando à incorporação dos pardos pelos negros ativeram-se aos mulatos e silenciaram em regra sobre os milhões de caboclos do país, cuja população é possivelmente mais numerosa do que a preta também nacionalmente. Na região Norte, há cerca de 14 pardos (em sua maioria caboclos) para cada preto e aqui no Centro-Oeste a proporção é de cerca de 11 para 1. Mesmo no Sudeste, onde a proporção entre pardos e pretos é de 4 para 1, parte destes pardos são mamelucos. Mestiços de brancos e indígenas já habitavam o Brasil décadas antes da chegada de africanos.

Nossa Constituição assegura a valorização da diversidade étnica e regional e a proteção de todos os grupos participantes do processo civilizatório nacional. O mestiço brasileiro, organizando- se em associações para a defesa de sua identidade, tem esta reconhecida oficialmente por leis como as que instituíram o Dia do Mestiço nos Estados do Amazonas, de Roraima e da Paraíba, e também o Dia do Caboclo.

Contradizendo sua política interna, o Brasil tornou-se signatário dos documentos finais da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas, e de sua Conferência de Revisão, promovidas pela ONU em 2001 e 2009,

“Reconhecemos, em muitos países, a existência de uma população mestiça, de origens étnicas e raciais diversas, e sua valiosa contribuição para a promoção da tolerância e respeito nestas sociedades, e condenamos a discriminação de que são vítimas, especialmente porque a natureza sutil desta discriminação pode fazer com que seja negada a sua existência”.

As próprias comissões de seleção, porém, têm demonstrado que pardo não é negro. Diversos casos têm sido noticiados envolvendo duas pessoas com parentesco sangüíneo, inclusive de gêmeos idênticos, em que uma é aceita como negra e outra não. E também de exclusão de cotista quando já cursando a faculdade.

Desconhecemos um único caso em todo o Brasil no qual isto tenha ocorrido com dois parentes de cor preta; todos os casos de que temos conhecimento ocorreram com pessoas pardas. Informa a UnB que a sua comissão responsável pela decisão é formada por representantes de movimentos sociais ligados à questão, especialistas no tema. De movimentos negros, pois pardos não compõem tais comissões.

Cotas para estudantes provenientes das escolas públicas e carentes valoriza o ensino público, a meritocracia, a solidariedade, estimula o investimento e não o conflito racial. É necessário instituir o ensino fundamental em período integral (inclusive existe uma PEC, a 94/03, no Senado - seria muito interessante ser implementada) e aumentar o número de vagas nas universidades. Cotas raciais não custam um centavo ao governo.

Ações afirmativas não visam criar diferenças, pelo contrário, visam superar discriminações motivadas por diferenças. Visam levar à cidadania, não a relativizar. Harmonizam com a Constituição cidadã que esta Suprema Corte tem defendido.

Muito obrigada.

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