Luiz Felipe de Alencastro.
Folha de São Paulo. Domingo, 7 de março de 2010
Pacto entre proprietários de escravos constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica do Brasil
LUIZ FELIPE DE ALENCASTROCOLUNISTA DA FOLHA
Em 2010, os negros brasileiros passam a formar a maioria da população do país. A mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentossobre o nosso passado e desafios para o nosso futuro.No século 19, o Império do Brasil aparece como a única nação que praticava o tráfico negreiro em larga escala.Alvo da pressão britânica, o comércio de africanos passou a ser proscrito por uma rede de tratados que a Inglaterra teceu no Atlântico. Na sequência do tratado de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831 proibiu o comércio de africanos no Brasil.Entretanto, 760 mil indivíduos vindos da África foram trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de tráfico clandestino.Ora, a lei de 1831 assegurava a liberdade imediata aos africanos introduzidos no país após a proibição.
A partir daí, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do Código Criminal de 1830.Porém, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de sequestro, deixando livre curso ao crime correlato, aescravização de pessoas livres.Imoral e ilegal. Os 760 mil africanos desembarcados até 1856 é a totalidade de seus descendentes, continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, aescravidão do Império era ainda,primeiro e sobretudo,ilegal.Tenho para mim que esse pacto dos sequestradores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira. Firmava-se oprincípio da impunidade e do casuísmo da lei. Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista.Outra deformidade gerada pelo sistema refere-se à violência policial.Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos EUA, o escravismo passou a ser consubstancial à organização das instituições nacionais.Entre as múltiplas contradições engendradas por essa situação, uma relevava do Código Penal: como punir o escravo delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena de prisão? O quadro legal definiu-se em dois tempos.Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, no artigo 179, a extinção das punições físicas. "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura,a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis."Conforme os princípios do iluminismo, ficavam preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres. Num segundo momento, o artigo 60 do Código Criminal reatualiza a pena de tortura: "Se o réufor escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés,será condenado na de açoites...".Com o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o dilema. Oficializada até o final do Império, essa prática punitiva atingiu as camadas desfavorecidas, travando o advento de uma política fundada na liberdade individual e nos direitos humanos. Uma terceira de formidade gerada pelo escravismo afeta o estatuto dacidadania.É sabido que até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros alforriados, podiam ser eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de segundo grau, os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores. Em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado.Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava barrar o acesso do corpo eleitoral aos libertos. Gerou-se uma infra cidadania que perdurou até 1985, quando foi autorizado o voto dos analfabetos. Masa exclusão foi mais impactante na população negra, em que o analfabetismo registrava, e continua registrando, taxas proporcionalmente mais altas do que entre os brancos.Nascidas no século 19, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o país inteiro. Por essa razão, ao agir em sentido contrário, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os negros consolidará nossa democracia.Democracia Não se trata aqui de uma lógica indenizatória, destinada a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica,como foi o caso, emboa medida, nos julgamentos sobre as terras indígenas. Trata-se,sobretudo, de inscrever a discussão sobre as cotas no aperfeiçoamentoda democracia.Nesse sentido, a arguição de inconstitucionalidade impetrada no Supremo Tribunal Federal [que analisa a constitucionalidade do sistemade cotas da Universidade de Brasília] revela-se obsoleta. Na verdade,as cotas raciais beneficiaram e beneficiam dezenas de milhares de estudantes nas universidades privadas no quadro do ProUni e 52 mil estudantes nas universidades públicas, funcionando há vários anos, com grande proveito para a comunidade acadêmica e para o país.Os incidentes suscitados pelas cotas raciais são mínimos e muitíssimo menos graves do que as truculências perpetradas nos trotes universitários. Como no caso do plebiscito sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, o debate sobre as cotas raciais atravessa as linhas partidárias. Aliás, as primeiras medidas de política afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido, pelo governo FHC.A existência de alianças transversais deve nos conduzir, mesmo em ano de eleição, a um debate onde os argumentos possam ser analisados a fim de contribuir para a superação da desigualdade racial que pesa sobre ademocracia brasileira.LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e professor na Universidade de Paris 4. Este artigo é um resumo da fala apresentada no STF, como representante da Fundação Palmares.http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0703201009.htm
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