Memória do jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein.
Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT. 200p.
Memória do jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein. Vassouras, 1949, coletânea de artigos com cd anexo, já nasce como indispensável, dado o investimento, a qualidade e a expertise dos trabalhos reunidos. Tendo como tema central o "jongo", a obra é também entrada privilegiada aos temas mais amplos da escravidão e da pós-escravidão negra dos séculos XIX-XX, dos trânsitos socioculturais atlânticos ao longo do período colonial e da constituição de culturas/comunidades "afro-americanas". Seu fio condutor é a homenageada obra do historiador norte-americano Stanley Stein, Vassouras. A Brazilian Coffee County, 1850-1900. The Roles of Planter and Slave in a Plantation Society (1957), em especial o conjunto de gravações realizadas em fins da década de 1940 com "ex-escravos".
O leitor é apresentado de maneira generosa a rico e denso material que busca recuperar, alinhavando-as, a trajetória da dança e a do historiador que dela faz uso como fonte e foco de atenção. Nesse sentido, Memória do jongo é também reflexão sobre a escrita da história, já que preenche o lugar de entrada crítica e comentada (acumulada, em especial, em preciosas notas de pé de página, reduto para especialistas) não só à obra de Stein e às suas gravações, mas também ao campo intelectual em que estas se situam e vão sendo ressignificadas. Vale ressaltar que a publicação se soma a um conjunto mais amplo de ações, como a organização de encontros acadêmicos e a Coleção "Stanley J. Stein" de gravações e fotografias. Por todas estas ações e o modo como o leitor é apresentado ao material e seus desdobramentos, a publicação deve ser saudada.
Podemos organizá-la em dois focos centrais: primeiro, em Stein, no processo de produção e na repercussão de Vassouras; depois, no jongo (nome escolhido dentre os termos mapeados), em especial em sua relação com a região delimitada como "África Central". Ao final, além das gravações acompanhadas de transcrições e comentários, somos ainda apresentados às fotos de Stein e às gravuras de viajantes do Brasil Colônia. Produzido entre os anos de 1999-2007, o trabalho é fruto do encontro do historiador norte-americano com um pesquisador brasileiro, Gustavo Pacheco, antropólogo e etnomusicólogo. Deste encontro, desdobra-se um conjunto de articulações entre pesquisadores, instituições e fontes de fomento que participam da produção da obra (Cecult/Unicamp, Petrobras, CNPq).No texto de abertura, "Memória por um fio: as gravações históricas de Stanley Stein", espécie de introdução geral, Pacheco refaz o caminho percorrido do encontro das gravações, sua digitalização e edição, até a reunião dos pesquisadores que dariam conta do exercício geral da coletânea: "extrair", das gravações e da obra de Stein "o máximo de informação possível" (:19). No caso, o autor posiciona as gravações na história do desenvolvimento de registros sonoros e de seus usos, em particular, no registro de expressões orais e musicalidades de grupos e subgrupos das sociedades humanas. Neste sentido, as gravações de Stein fazem parte de um campo de investigações no qual encontraremos a família Lomax ou o "folclorista" Benjamin Botkin (:20). Como recupera o autor, a preocupação geral que unia trabalhos como os da família Lomax e do antropólogo M. Herskovitz era a "coleta de memórias e tradições folclóricas de ex-escravos norte-americanos" (:20-21), sendo a música considerada como acesso privilegiado a uma "cultura", a uma "tradição", a uma "cosmovisão".
No total, chegam a nós 60 cantigas (pontos), em misto de português com bantu, cinco amostras de células rítmicas de tambores, oito cantigas com acordeão, uma folia de reis, cinco batucadas de samba e um samba cantado. Tanto no texto de Pacheco (:16-17) quanto no de Slenes (:113-115), encontramos uma definição geral do jongo como: a) "dança"; b) "gênero poético-musical". Ele está filiado ao conjunto mais amplo das "danças afro-brasileiras", com funções e significados que atravessam as fronteiras que vão do laico ao sagrado.
Em termos gerais, é através da história como disciplina e fio articulador que a obra é apresentada e analisada. Talvez por isto a ênfase dada ao seu "pioneirismo", em função das técnicas utilizadas de produção e análise de materiais (em arquivos e em campo), que só vieram a ser efetivadas para a historiografia algumas décadas depois, como no caso da micro-historiografia italiana - talvez ênfase excessiva, se posicionarmos o trabalho de Stein no campo mais amplo das ciências sociais, no contexto norte-americano das décadas de 1930-1940.
No segundo texto da coletânea, "Uma viagem maravilhosa", encontramos um Stein memorialista tanto de si mesmo como de uma geração de investigadores, da qual ele dá conta ao retomar as preocupações, as intuições e os improvisos que levaram ao que é hoje metodologia consagrada para a História e para a Antropologia. Logo no início, ele se pergunta sobre o pequeno conjunto de gravações que realizou, já nos convidando a posicionar sua obra (:35): "Pensando bem, este 'acontecimento' foi uma sorte de pesquisador - ou teria sido algo além disso?".
Apesar de a bibliografia de Vassouras ser basicamente de literatura brasileira, aquela que Stein reconhece como sua segunda "corrente inspiradora" (:38), sua matriz epistemológica fundamental, é a apresentada no prefácio à edição inglesa de 1985, neste artigo, um pouco mais detalhada: a de uma geração que tinha os "estudos de comunidade" como norte investigativo e a "sociedade-cultura da plantation" como foco, ampliando o estatuto da "fonte" para os campos da oralidade, da escrita, das práticas cotidianas e até da arquitetura (:37). Neste sentido, Stein filia-se à geração formada por Herskovitz, Redfield e Steward, da qual sobressaem, além do seu próprio, também os trabalhos de Eric Wolf e Sidney Mintz (:37). O "pioneirismo" da obra, portanto, deve ser relativizado, mas não a sua importância.
Esse mesmo quadro é recuperado mais detalhadamente por Silvia H. Lara em "Vassouras e os sons do cativeiro no Brasil", em particular a presença de Herskovitz como inspiração mais próxima, particularmente na atenção dada ao "modo como a cultura africana havia se mantido intacta no Novo Mundo ou se misturado à cultura de origem europeia" (:50). Além disso, a autora acompanha as múltiplas leituras e os usos que a obra alcançou desde a sua publicação até a atualidade no campo da historiografia, em especial a brasileira. Em função da complexidade, da densidade e do amplo espectro de fontes produzidas e articuladas em Vassouras, resume Lara, há a cada "nova forma de apreender a história" (da ênfase ao desenvolvimento econômico à atenção aos "padrões de vida" cotidianos) "um novo jeito de ler Vassouras" (:59).
Em "Jongo, registros de uma história", de Hebe Mattos e Martha Abreu, adentramos o segundo movimento da coletânea, agora dedicada ao jongo, sua trajetória, origens, formação e atualidade. Neste artigo, somos apresentados ao exercício crítico de como o jongo "foi visto e avaliado, do século XIX ao início do século XXI, por folcloristas, autoridades governamentais e pelos próprios jongueiros", passando de prática muitas vezes proibida a "bem cultural do Brasil" (:73). A recuperação histórica é minuciosa, com ênfase no modo como a prática é representada. Entre os termos mapeados para dar conta de danças com feições como as do jongo descrito por Stein, estão batuque, o mais geral, e jongo e caxambu, os mais específicos.
Apesar de alertarem para "imprecisão e generalização" (:74) do termo batuque, parece que todas as palavras são tomadas rapidamente como sinônimos, como que referidas a um mesmo fenômeno social, guardado na grande noção unificadora de batuque. Talvez por isso a afirmação das autoras de que o batuque seria o "gênero mais identificado com a população escrava e africana" (:75). No entanto, não parece haver de fato base material para considerar o batuque categoricamente como um "gênero" musical, antes o termo parece estar sendo usado nas fontes compiladas como instrumento de controle simbólico, de nomeação (nos termos de Todorov), de perfil homogeneizador em face das singularidades sócio-históricas às quais se refere.
Recuperando referências, citações e imagens de um conjunto de autores - desde viajantes naturalistas a folcloristas e pesquisadores modernos - chegamos à contemporaneidade, quando a manifestação "sincrética" "afro-brasileira" é consagrada como "patrimônio". Apesar de mapear o quadro contemporâneo de agências com as quais "comunidades remanescentes de quilombo" estão relacionadas na busca de autonomia e representatividade, o quadro apresentado parece muito simplificado, bem como o protagonismo das "entidades dos próprios jongueiros" (:70) merece ser relativizado. Apesar dos avanços, a formação de candidaturas e os posteriores reconhecimentos como "patrimônio", como o caso do jongo, têm se dado em campos políticos bem mais complexos, bastante clientelistas e autoritários. De todo modo, como enfatizam ao final as autoras, "a memória e a prática do jongo, transformadas em patrimônio cultural, vêm desempenhando papel importante neste acerto de contas com o passado - que abre caminhos para o futuro" (:106).
Por fim, fechando a coletânea, o artigo mais denso e difícil: o trabalho de Robert W. Slenes, "Eu venho de muito longe, eu venho cavando: jongueiros cumba na senzala centro-africana", que se propõe a dar continuidade, a partir de base de dados extensa e atualizada, a alguns dos "desafios" (:114) deixados por Stein: a) "a ligação do caxambu/jongo com o mundo espiritual dos escravos"; b) a origem bantu dos negros envolvidos na plantation do café, o que Slenes classifica como "área cultural" (categorização já bastante discutida) e, em termos linguísticos, de "constelação kumba" (:142-143). O autor segue as pistas deixadas por Stein no capítulo de Vassouras voltado para "religião e festividades", no qual o autor norte-americano enfatiza que, apesar de laico em sua temática, estava "erigido a partir de elementos religiosos africanos".
Para corroborar esse trânsito, Slenes opera com a categoria/tipo "jongueiro cumba", à qual agrega não só conhecimentos da ordem do laico e do sacro, como também papel e algum poder político. Cruzando recorrências socioculturais e linguísticas, vai construindo um amplo universo de referências, convincente pela quantidade de dados reunidos, em que fica cada vez mais plausível posicionar definitivamente o "jongo". Mas permanece a dúvida se o efeito de unidade construída não é narrativo, uma vez que alguns dos repertórios elencados para apresentar a continuidade "África central" - "sudeste brasileiro", tais como "espíritos territoriais" e "ancestrais", "cultos de aflição" [:124], vocabulários-metáfora e "pressupostos cosmológicos" [:128]), são amplamente generalizáveis para outros grupos étnicos da África, alguns até bem mais alhures.
Em que medida estaria Slenes participando do que Kofi Agawu chamou, para o caso da música, de "invenção da rítmica africana"? Neste sentido, o investimento preenche os espaços deixados pelo "mestre", dá-lhes assentamento, sem que se altere, no entanto, a prescrição do receituário que já estava traçado desde a década de 1950, ligando o sudeste cafeeiro à África central. Apesar de um dos campos de ação investigativa - como proposto no início da publicação - ser o das rupturas e descontinuidades (:15), este viés ficou para uma próxima publicação, uma vez que Memória do jongo pode ser posicionado como um dos "pontos terminais" (nos termos de Redfield) no grande campo de estudos de "comunidades afro-americanas", que têm personagens como Herskovitz como "fundadores" de metodologias e paradigmas.
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