É sabido que a construção da
sociedade brasileira deu-se de modo extremamente violento e abrupto.
Iniciou-se com a chegada dos portugueses em 1500, em que estes, num
processo “civilizatório”, colonial e escravista roubou, aniquilou e
expropriou milhares de indígenas que aqui viviam, a fim de lançar luzes à
nova terra, então pagã.
Anos mais tarde, ainda no século XVI, negros africanos foram
sequestrados de suas terras e jogados aqui, também para dar continuidade
a esse maldito processo “civilizatório” e atender as demandas da
economia mercantil.
Séculos se passaram, índios e africanos colonizados, e europeus colonizadores constituíram o que temos hoje, a nação brasileira.
Foi essa a ideia que Gilberto Freyre, em sua obra Casa-Grande & Senzala, incutiu no imaginário popular ao dizer que: “Todo
brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na
alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo
Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.
Ao apreciar esse grande
“clássico” da historiografia nacional, pode-se perceber o quanto índios,
negros e brancos construíram “harmonicamente” o Brasil. A visão
romanesca presente na obra, de fato, nos remete à ideia fictícia de
paraíso racial existente aqui.
Os conflitos existentes em todo o processo colonizador e
“civilizatório” foram ignorados diante essa afirmação e a imagem que
temos é a de que três matrizes ajudaram voluntariamente a construir a
sociedade brasileira, essa nação mestiça.
Mais adiante, no século XIX,
após a abolição da escravatura os projetos de branqueamento do país
passaram a constituir ações que ajudaram a implantar novas teorias
racialistas, que projetavam em curto prazo a extinção da raça negra no
Brasil. Isso porque o advento da libertação dos escravizados, com a
assinatura da Lei Áurea em 1888, gerou uma série de problemas à
sociedade da época. Negros libertos agora ganharam às ruas. Sem moradia,
emprego, educação, saúde ou qualquer outro direito social que lhes
assistissem, muitos viviam na mendicância, e com isso o governo tratou
logo de fazer a limpeza etnossocial das cidades, a fim que essa “massa
podre” fosse banida de uma vez.
E daí, eis que surge mais um
ideal que afrontava a população negra excluída, e que objetivava
mantê-la o mais longe possível de qualquer sinal remanescente, mas
próspero, de civilização. O princípio da eugenia apostou na imigração
europeia para compor a nova mão de obra trabalhista das lavouras, antes
exercidas por negros africanos. Entretanto, devemos ressaltar que os
imigrantes europeus trazidos para o Brasil no pós-abolição não se
espalharam por todo o país. Eles e elas se fixaram nas regiões mais
dinâmicas da economia nacional e de clima mais próximo do clima da
Europa (regiões sudeste e sul, respectivamente). O nordeste, que no
passado colonial foi a região mais rica do país, entrou em franca
decadência depois da abolição da escravatura, e por isso pouquíssimos
foram os brancos europeus que vieram para cá.
Mário Theodoro, em seu artigo A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil, nos disse que:
O
trabalho escravo, núcleo do sistema produtivo do Brasil Colônia, vai
sendo gradativamente substituído pelo trabalho livre no decorrer dos
anos 1800. Essa substituição, no entanto, dá-se de uma forma
particularmente excludente. Mecanismos legais, como a Lei de Terras, de
1850, a Lei da Abolição, em 1888, e mesmo o processo de estímulo à
imigração, forjaram um cenário no qual a mão-de-obra negra passa a uma
condição de força de trabalho excedente, sobrevivendo, em sua maioria,
dos pequenos serviços ou da agricultura de subsistência.
Nesse contexto, a consolidação da visão de cunho racista, de que
progresso do país só se daria com o “branqueamento”, suscitou a adoção
de medidas e ações governamentais que findaram por desenhar a exclusão, a
desigualdade e a pobreza que se reproduzem no país até os dias atuais.[1]
Ou seja, a composição etnogeográfica do Brasil foi estrategicamente pensada.
Chegado até aqui, adentro essa discussão com a proposta de explorar
o que há por trás do imaginário popular quando se trata do
pertencimento étnico de algumas famílias brasileiras. De antemão,
julguei necessário fazer esse apanhado histórico acerca da formação e
composição étnica brasileira, a fim de que pudesse constatar as
abordagens que virão a seguir.
* * *
Para tratar cautelosamente do
assunto que pretendo abordar, faço uso da empiria inebriante que é viver
em Salvador, cidade situada na região nordeste do país,
majoritariamente negra, mas que carrega a esquizofrenia do ideal de
brancura no imaginário de algumas pessoas que por aqui vivem. Tão logo
me remeto a pensar que tipo de sociedade se faz representar pelas
pessoas que habitam Salvador, senão a negação de sua identidade. Seria
um retrato idealizado de brancura que hostiliza a possível ideia de se
ver como negro (a)?
Como estudante de Pedagogia,
tive a oportunidade de conhecer algumas instituições escolares. Vale
salientar que todas são públicas e situadas em bairros periféricos de
Salvador, cujo público frequentador é composto por crianças e jovens
negros e negras em situação de vulnerabilidade social. Sei que é uma
redundância dizer que negro é pobre, tendo em vista que pobreza no
Brasil tem cor, como bem disse Luiza Bairro.
O economista Marcelo Paixão, em palestra proferida no Instituto
Cultural Steve Biko no dia 14 de junho de 2012, complementa muito bem
essa informação ao dizer que, no Brasil, raça e classe são fatores
altamente imbricados. A possibilidade de uma pessoa pobre ser preta é
muito maior do que uma pessoa branca. Por sua vez, a possibilidade de
uma pessoa rica ser branca é muito maior do que uma pessoa preta. Além
disso, vale destacar que as pessoas mais ricas no Brasil são brancas e
do sexo masculino. Em suma, raça, classe e gênero são critérios
fortemente entrelaçados.
É por isso que o combate ao racismo também tem de ser feito contra o machismo, o preconceito de classe e a homofobia, pois o racismo não age sozinho. Todas essas ideologias unem forças para manter o macho branco e rico no controle de todas as engrenagens de comando no Brasil, como bem disse o presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa.
Nas visitas às escolas, me deparei com situações que eu poderia
dizer serem esquisitas. Confesso que busquei entender o contexto, a
originalidade da ideia, o objetivo de quem pensou em desenvolver a obra,
e de fato, entendi. Tanto que o resultado é esse texto.
Numa escola específica, tive o desagrado de ir ao momento de comemoração ao Dia das Mães. Não vejo muito sentido, a não ser o capitalista, para essa data, e o meu descontentamento começou por aí.
Ao chegar lá, estudantes
reunidos por turma haviam produzido cartazes em homenagem às suas mães e
fixado-os na área que correspondia à quadra esportiva. Lembro bem, era
uma área grande em que muitas mães foram recebidas pelas professoras e
direção da escola, afinal de contas, era um momento festivo. Estavam
todas lisonjeadas com as produções dos seus filhos.O que me causou espanto foi o fato desta escola estar situada num
bairro paupérrimo de Salvador, onde só havia crianças negras e as
produções dos estudantes só continham fotos de famílias europeias. Isso
mesmo! Europeias. O que vi estava muito longe de ser um espectro de
família brasileira, muito menos soteropolitana. Não estou aqui para definir qual a cor de cada um, mas creio que
seja necessário criar um senso de identidade e pertencimento étnico nos
estudantes desde cedo. Projetar no inconsciente infantil um ideal de
brancura no qual ele não se enquadra sob nenhuma hipótese é demasiadamente violento. Pois meninas quando crianças sonham com a boneca Barbie, em ter seus cabelos loiros, esvoaçantes e a pele alva. Coisa que elas não terão nem sob pena de morte.
Não suponho que caiba a mim esse papel, que, do alto da minha
prepotência, direi a partir de então quem é preto e quem é branco no
país, ou melhor, estipularei o mesmo padrão de negritude adotado nos
Estados Unidos, o da última gota de sangue. Não é isso! Só penso que os e
as profissionais docentes devem ter o máximo de cuidado quando abordam
padrões étnicos. Eu não posso, nem vou aqui tentar impor um novo
conceito de identificação étnica para cada um, mas ainda acredito na
necessidade de repensar com imensa destreza o modo como lidamos com a
nossa prática docente, e como se dão os impactos de uma educação
racialista no Brasil. Tentar desconstruir estereótipos
e ressignificar o sentido de identidade é um bom caminho a ser seguido,
pois seguindo o modelo atual, estaremos mais do nunca fadadas ao
fracasso escolar.
Pois no Brasil, ser negro é tornar-se negro. Perceber os aspectos
imbricados nessa temática é dever das profissionais da educação. Uma
escola que almeja executar uma prática cidadã deve incluir a questão
racial tanto no currículo escolar, como na prática pedagógica. As bases
legais por si só não garantirão o pleno desempenho e a execução das
atividades que doravante irão tratar do respeito à diversidade. Sabemos
que é necessário muito mais do que isso para que as ações se
concretizem.
A escola precisa, de fato, rever os enunciados e o modo como o
segmento negro vem sendo tratado e retratado nos cartazes, nas
exposições, nos livros didáticos, nas celebrações e nos auditórios. Tudo
isso representa desvelar o silenciamento pertinente sobre a questão
racial na escola.
- GOMES, Nilma Lino. Educação cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da diversidade. In: CAVALLEIRO, Eliane (org.) Racismo e anti-racismo na escola: repensando nossa escola. São Paulo:Selo Negro, 2001.
- FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª ed. rev. São Paulo:Global, 2006.
- SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. 2ª ed.. Salvador:EDUFBA, 2004.
- SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro:Graal, 1983.
- THEODORO, Mario. A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In: THEODORO, Mário. As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. 2ª ed. Brasília:IPEA, 2008.
[1] THEODORO, Mario. A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In: THEODORO, Mário. As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. 2ª ed. Brasília:IPEA, 2008. p 19.
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