MANIFESTO PELOS DIREITOS QUILOMBOLAS
“Para o Brasil alcançar a modernidade era preciso por fim à escravidão. Era preciso, também, libertar a terra dos antigos proprietários coloniais, de forma racional, entre ex-escravos e imigrantes. A abolição da escravatura eu vivi para ver. A democracia rural não” (André Rebouças, 1895).
“Os desafios de hoje são os desafios de ontem. Porque os de ontem? Porque esses foram o desafio da superação dos navios, da escravidão, do anonimato, do abandono, e etc. Os de hoje não são esses, mas tem a mesma finalidade que é anular qualquer possibilidade de que preto nesse País seja tratado como o restante da população. Quando a grande imprensa, o latifúndio, setores conservadores da sociedade reagem contra essa política nós entendemos que o que está acontecendo hoje é o mesmo que aconteceu ontem, só que por outros meios e outros mecanismos. O que está posto é a certeza de que cada vez mais precisamos estar unidos. É uma luta árdua e, acima de tudo, é uma luta coletiva, pois só assim teremos força para lutar por um direito que nos é tão negado, que é o direito às nossas terras”. (Givânia Maria da Silva - 2008).
A questão quilombola esteve presente, do ponto de vista legal, tanto no regime colonial como no imperial de forma significativa no Brasil. No período republicano, a partir de 1889, o termo “quilombo” desaparece da base legal brasileira, e reaparece na Constituição Federal de 1988, como categoria de acesso a direitos, numa perspectiva de sobrevivência, dando aos quilombos o caráter de “remanescentes”. São, portanto, cem anos transcorridos entre a abolição e a aprovação do Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, cujo conteúdo reconhece os direitos territoriais das comunidades quilombolas.
A Constituição de 1988 opera uma inversão de valores no que se refere aos quilombos em comparação com a legislação colonial, uma vez que a categoria legal por meio da qual se classificava quilombo como um crime passou a ser considerada como categoria de autodefinição, voltada para reparar danos e acessar direitos. A partir do Artigo 68 e das legislações correlatas, a conceituação de quilombo supera a identificação desses grupos sociais por meio de características morfológicas. Tais grupos, portanto, não podem ser identificados pela permanência no tempo de seus signos culturais ou por resquícios que venham a comprovar sua ligação com formas anteriores de existência.
Conceber as comunidades quilombolas a partir da perspectiva da autodefinição tem levantado algumas ponderações sobre as manipulações que podem ser empreendidas pelos próprios sujeitos sociais pertencentes a essa identidade étnica. Isso é base, inclusive, para a ADI, impetrada pelo Partido da Frente Liberal – PFL, atual Democratas – DEM, no Supremo Tribunal Federal – STF, ao Decreto 4887/2003, que regulamenta a titulação de terras de quilombos e se constitui na perspectiva da auto-declaração da comunidade. Ao alegar a sua inconstitucionalidade, parece-nos, mais uma vez, o desejo de retorno legal à escravidão.
Os interesses contrários aos direitos quilombolas de hoje, são os mesmos daqueles que, no período da escravidão, lutaram incansavelmente para que a mesma não tivesse fim. Contestaram e contestam, principalmente, o direito aos territórios das comunidades que, uma vez titulados, se tornam inalienáveis e coletivos. As terras das comunidades quilombolas são herdadas e cumprem sua função social precípua, dado que sua organização se baseia no uso dos recursos territoriais para a manutenção social, cultural e física do grupo, fora da dimensão comercial. São territórios que contrariam interesses imobiliários, de instituições financeiras, grandes empresas, latifundiários e especuladores de terras. Os conflitos fundiários hoje existentes em algumas comunidades quilombolas envolvem, na maior parte das vezes, esses atores, que repito, são os mesmos de ontem.
O Conceito de Quilombo ganha novo marco jurídico após a Constituição de 1988 e esse fato é determinante também para o estabelecimento e organização do movimento quilombola, em nível nacional, que, a partir da construção de sua identidade étnica reivindica o seu direito à terra.
A ocupação das terras brasileiras pelo poder colonial data de mais de cinco séculos. Após a abolição formal da escravidão (Lei Áurea nº 3.353, de 13 de maio de 1888), levou-se cem anos para que fossem reconhecidos os direitos às terras aos descendentes dos antigos quilombos, por meio do Artigo 68.
Hoje, após duas décadas de vigência do Art. 68, pouco mais de cem comunidades tiveram seus territórios reconhecidos. A base de dados do Governo Federal aponta para a existência de 3.554 comunidades quilombolas no Brasil. Estão presentes em todas as regiões do País, com maior concentração nos estados do Maranhão, Pará, Bahia e Minas Gerais, dentre as quais apenas 185 estão tituladas. A maioria, portanto, das comunidades quilombolas no Brasil têm seu direito fundamental à terra não efetivado. A fragilidade da efetivação desse direito se expressa nesse processo lento e árduo de titulação das terras quilombolas.
As dificuldades existentes para efetivar a titulação das terras das comunidades quilombolas refletem uma capacidade administrativa frágil da máquina estatal. Todavia, há disputas em jogo que superam as limitações administrativas e orçamentárias, que se constituem numa ordem política mais ampla. São obstáculos que de modo explícito ou não atuam no sentido de reter o reconhecimento de direitos étnicos pela propriedade definitiva das terras das comunidades quilombolas e se expressam de variadas formas.
Atualmente a principal luta dos quilombolas se volta para implementação de seus direitos territoriais. A noção de terra coletiva, tal como são concebidas as terras de comunidades quilombolas, coloca em crise o modelo de sociedade baseado na propriedade privada como única forma de acesso à terra, instituído desde a Lei das Terras (1850). Os novos marcos jurídicos sinalizam para a necessidade de reestruturação pelo Estado da lógica agrária, a partir do reconhecimento de seu caráter pluriétnico.
Quilombo: Perspectiva Histórica
O sistema escravista nas Américas contabilizou cerca de 15 milhões de africanos, homens e mulheres, arrancados de suas terras. Esse empreendimento marcou profundamente o continente africano e americano. Em relação ao Brasil, os mais de trezentos anos de escravidão se refletiram (e refletem) intensamente na realidade sócio-econômica-cultural, ao longo de toda a sua história.
O Brasil tem no âmago de sua história o tráfico e o comércio de africanos e africanas escravizados. Foi o país que mais importou escravizados e aquele que por último aboliu legalmente a escravidão. A profunda participação brasileira está marcada na estimativa de que cerca de 40% dos africanos escravizados tiveram como destino o Brasil.
A lógica de violência e coerção aos negros era um elemento estrutural do regime escravista. Os castigos e tormentos infligidos aos escravos não constituíam atos isolados de puro sadismo dos amos e seus feitores, constituíam uma necessidade imposta irrecusavelmente pela própria ordem escravista, que, de outro modo, entraria em colapso. Pois, sem a compulsão do terror, o indivíduo simplesmente não trabalharia, nem se submeteria ao cativeiro.
O tempo médio de vida útil dos negros e negras escravizados no Brasil era de sete anos, e sua a substituição era automática, sem que houvesse déficit na produção econômica. O tráfico se dava em grandes proporções e a distribuição de cativos abrangeu todo o território nacional.
Para além de todo o aparato de repressão violento presente nas fazendas e nos espaços onde havia escravos, existia grande legislação, tanto no regime colonial como no imperial, que fundamentava a criminalização e penalização das fugas e tentativas de rebelião de escravos.
As referências primeiras aos quilombos foram pronunciadas pela Coroa Portuguesa e seus representantes que administravam o Brasil colônia. Essas referências situam-se no contexto de repressão da Coroa aos negros aquilombados. O seu marco inicial foi possivelmente o que consta no Regimento dos Capitães-do-Mato, de Dom Lourenço de Almeida, em 1722: “pelos negros que forem presos em quilombos formados distantes de povoação onde estejam acima de quatro negros, com ranchos, pilões e de modo de aí se conservarem, haverão para cada negro destes 20 oitavas de ouro” (apud Guimarães, 1988: 131).
Em 1740, em correspondência entre o Rei de Portugal e o Conselho Ultramarino, quilombos ou mocambos foram definidos como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em partes despovoadas, ainda que não tenham ranchos levantados, nem se achem pilões neles”. Essa perspectiva conceitual de quilombo se fez presente em diversos outros documentos legais posteriores.
Esse processo histórico aponta para um continuum de resistência, por parte dos africanos e seus descendentes, que marca os últimos séculos de história de nosso País. Os primeiros africanos escravizados chegaram ao Brasil em 1554. Foram 316 anos de “tráfico negreiro”, o que representa 63% do tempo de vida do País.
A resistência quilombola, durante o período da escravidão, exigiu estratégias organizativas bastante intensas. Esses registros permeiam a construção identitária de diversas comunidades quilombolas atualmente. A ação contra os antagonistas, historicamente vivenciada por nós, nos dias atuais também se processa, só que de diferentes formas. Lutamos pelo direito de existirmos e de termos assegurado nosso direito à terra, garantido na Constituição.
As comunidades quilombolas representaram, durante o regime colonial e imperial, uma forte estratégia de resistência negra e um elemento de desestabilização da lógica escravista, uma vez que se constituíam como ruptura social, ideológica e econômica com o modelo vigente.
Os quilombolas, ao tomarem posse de um pedaço de terra, onde morando e trabalhando criavam o quilombo, estavam revogando, por meio da luta, e na prática, a legislação imposta pela classe dominante que os excluía da condição de possuidores da terra, fosse a que título fosse.
A dimensão da exclusão do acesso à terra fica mais nitidamente expressa na Lei de Terras, de 1850, que proibia a aquisição das terras a não ser pela via da compra. Esta Lei, em seu artigo 1º, determina: “Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por título que não seja o da compra”. Nas várias regiões escravistas, os negros escravizados, a partir de suas roças e economias próprias, e os quilombolas, que estruturaram a partir da terra seus usos e costumes, formaram um campesinato negro ainda durante a escravidão. Essas organizações e comunidades negras foram diretamente atingidas pela Lei de Terras, especialmente porque o acesso à terra se deu por diversas vias, tais como a doação, ocupação e também a compra.
Com a instituição da Lei de Terras em 1850, grileiros, posseiros e supostos donos de terras buscaram obter ou regularizar títulos de propriedade sem levar em conta os direitos de comunidades que historicamente ocupavam seus territórios. Nesse processo, muitas comunidades sofreram graves processos de expropriação.
Os territórios das comunidades quilombolas têm, portanto, uma gama de origens, tais como doações de terras realizadas a partir da desagregação da lavoura de monoculturas, como a cana-de-açúcar e o algodão; compra de terras pelos próprios sujeitos, possibilitada pela desestruturação do sistema escravista; bem como de terras que foram conquistadas pelos negros por meio da prestação de serviço de guerra, como as lutas contra insurreições ao lado de tropas oficiais.
Há, também, as chamadas terras de preto, terras de santo ou terras de santíssima, que indicam uma territorialidade derivada da propriedade detida em mãos de ordens religiosas, da doação de terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviços religiosos prestados a senhores de escravos por negros(as) sacerdotes de cultos religiosos afro-brasileiros.
Pesquisas recentes sinalizam, também, para essa diversidade de acessos à terra. Os dados da Chamada Nutricional Quilombola (2008), abordaram a natureza das terras das comunidades quilombolas em 60 comunidades das cinco regiões, sorteadas a partir de uma base amostral. Segundo informações fornecidas pelas comunidades entrevistadas, a maioria das terras (64%) foi adquirida por meio de herança ou doação. Apenas 9% das terras foram compradas, 25% tiveram como origem a posse e 4% foram arrendadas.
Os processos de territorialização das comunidades quilombolas sucederam-se por meio de uma multiplicidade de formas. Entretanto, a Lei de Terras contrapunha e excluía todas essas demais perspectivas territoriais. Esse fato dialoga com outros interesses da época.
A lei de Terras foi uma condição para o fim da escravidão. Quando as terras eram livres, como no regime sesmarial, vigorava o trabalho escravo. Quando o trabalho se torna livre, a terra tem que ser escrava, isto é, tem que ter preço e dono, sem o que haverá uma crise nas relações de trabalho. O modo como se deu o fim da escravidão foi, aliás, o responsável pela institucionalização de um direito fundiário que impossibilita, desde então, uma reformulação radical de nossa estrutura agrária.
A luta contemporânea dos quilombolas pela implementação de seus direitos territoriais representa o reconhecimento do fracasso da realidade jurídica estabelecida pela “Lei das Terras”, que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de terras. A incorporação no Estado de tal perspectiva exclui vários outros usos e relações com o território, tal como o dos povos indígenas e das comunidades quilombolas.
A abolição formal da escravidão, oficializada pela Lei Áurea nº 3.353, de 13 de maio de 1888, não representou o fim da segregação e da falta de acesso aos direitos para negros e negras, e isso se refletiu fortemente nas comunidades quilombolas, constituídas em todas as regiões do País.
Os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos dos lugares que escolheram para viver, mesmo quando a terra chegou a ser comprada ou foi herdada dos antigos senhores através de testamento lavrado em cartório. São vários os casos de comunidades quilombolas que durante o século vinte perderam suas terras, mesmo tendo documentos comprobatórios de sua posse.
As mais de três mil comunidades existentes nas cinco regiões do país hoje resistiram a todas as formas de opressão. Os desafios atualmente colocados, mais uma vez, buscam reverter-se sobre a existência desses grupos. O Artigo 68 é um direito cujo modo de aplicação está fundado no Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003. A sustação dos efeitos desse Decreto põe em risco a cidadania e a própria existência desses grupos, uma vez que a histórica luta pelo direito à terra poderá se tornar, mais uma vez, uma realidade distante.
Base Legal
“Se pegar as normas constitucionais e os decretos na história do Brasil, eles são muito cruéis conosco. Nós só passamos a ser cidadãos brasileiros a partir da constituição de 1988. Antes nós não éramos cidadãos brasileiros” (Ivo Fonseca, quilombola de Frechal, Maranhão).
A Constituição de 1988 representa um divisor de águas ao incorporar em seu conteúdo o reconhecimento de que o Brasil é o Estado pluriétnico, ao reconhecer que há outras percepções e usos da terra para além da lógica de terra privada, e o direito à manutenção da cultura e dos costumes às comunidades e povos aqui viventes.
Para além do mencionado Artigo, se fazem presentes também nas constituições de vários estados da federação artigos que regem sobre o dever do Estado em emitir os títulos territoriais para as comunidades quilombolas. Essas legislações são resposta à mobilização dos quilombolas. Os estados que possuem em suas constituições artigos sobre os direitos territoriais quilombolas são Maranhão, Bahia, Goiás, Pará e Mato Grosso:
“O Estado reconhecerá e legalizará, na forma da lei, as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos” (Constituição do Estado do Maranhão, Art. 229).
“O Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação desta Constituição, a identificação, discriminação e titulação das suas terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos” (Constituição do Estado da Bahia, Art. 51 ADCT).
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos no prazo de um ano, após promulgada esta Constituição” (Constituição do Estado do Pará, Art. 322).
“O Estado emitirá, no prazo de um ano, independentemente de estar amparado em legislação complementar, os títulos de terra aos remanescentes de quilombos que ocupem as terras há mais de 50 anos” (Constituição Estadual do Mato Grosso, Art. 33 ADCT).
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos” (Constituição Estadual de Goiás, Art. 16 ADCT).
Além desses artigos das constituições estaduais, há legislações posteriores específicas em outros estados. Essas legislações estão presentes no Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. São, ao todo, onze estados que possuem legislação específica (seja ela constitucional ou não) que rege sobre o procedimento de regularização fundiária dos territórios quilombolas.
Do ponto de vista regional, outros países latino-americanos também possuem legislações que visam a efetivação dos direitos territoriais das comunidades negras rurais, que são denominadas de distintas formas nos vários países. A Nicarágua, por exemplo, efetiva os direitos das comunidades negras rurais de seu território por meio da Lei nº 445/2002, voltada ao que nesse país se denominam as comunidades étnicas. Na Colômbia, o direito das comunidades negras consta na Constituição Política de 1991, no artigo 55. No Equador, por meio do artigo 83 da Constituição Política de 1998, são assegurados os direitos ao que se denomina “pueblos negros o afroecuatorianos”.
No Brasil, há outros artigos constitucionais que fundamentam a aplicação dos direitos quilombolas, como é o caso dos Artigos 215 e 216, Seção II, da Carta Magna, que estabelecem:
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.”
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória, dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei.
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.”
Os Artigos 215 e 216 tratam da dimensão cultural das comunidades quilombolas e do direito à preservação de sua própria cultura. Aos artigos constitucionais se somam o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, a Instrução Normativa nº 49 do INCRA , e Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, das quais destaca-se a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (Genebra, 27 de junho de 1989) e a Convenção da UNESCO sobre Diversidade Cultural (2007).
Desde a Constituição Federal, de 1988, há uma crescente pressão para que o Estado implemente o disposto no Artigo 68, ADCT da CF. Em resposta às demandas por regularização fundiária, realizadas principalmente pelas comunidades quilombolas, o INCRA em 1995 inicia seus trabalhos, especialmente nas áreas de domínio público. Essa atuação se realiza em parceria com os Institutos de Terras Estaduais, em diálogo com a Fundação Cultural Palmares e o Ministério Público.
Nesse período, o INCRA não consolida sua atuação em relação aos procedimentos de regularização fundiária. Sinalização desse processo ocorre em 1999, quando a competência para titulação das terras de quilombo é atribuída à Fundação Cultural Palmares.
O instrumento legal que marca esse período e esse desenho administrativo é o Decreto 3912/2001, que também legitima as comunidades a partir de reminiscências arqueológicas. A ruptura com essa dimensão interpretativa do Artigo 68 e, por conseguinte, do conceito de comunidade quilombola se processa com a ratificação e a entrada em vigor da Convenção 169 da OIT.
A definição de quem são as comunidades quilombolas, de acordo com o Decreto 4.887, de 20 de Novembro de 2003, aponta que:
“Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida."
Com dimensão à definição dos elementos que constituem o território quilombola, o Decreto dispõe que:
“São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”.
O Decreto concebe as comunidades quilombolas como territórios de resistência cultural dos quais são remanescentes os grupos étnicos raciais que assim se identificam. Com trajetória própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a luta contra a opressão histórica sofrida, esses grupos se auto-identificam comunidades de quilombos, dados os costumes, as tradições e as condições sociais, culturais e econômicas específicas que os distinguem de outros setores da coletividade nacional. O Decreto apresenta, portanto, uma dimensão de existência atual dessas comunidades.
A definição da territorialidade balizada em aspectos mais amplos que a dimensão econômica se faz presente também na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que prevê, em seu art. 3º:
“Os territórios tradicionais são espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações”.
A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho , outro importante instrumento legal que embasa o conceito legal de quilombos, foi ratificada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002. Foi promulgada pelo Presidente da República, por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. O governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação junto ao Diretor Executivo da OIT em 25 de julho de 2002. A Convenção entrou em vigor no âmbito internacional em 5 de setembro de 1991 e, no Brasil, em 25 de julho de 2003. Foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro como norma supralegal, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988.
A Convenção 169 da OIT traz como um de seus pontos centrais, também incorporado pelo Decreto 4887/2003, a dimensão da autodefinição:
“Artigo 1º, Convenção nº 169 da OIT:
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.
Em diálogo com a Convenção da OIT, o Decreto 4.887/2003 define, portanto, como critério para identificar os remanescentes de quilombos a auto-atribuição. De acordo com o parágrafo 1º, Artigo 2º, do Decreto 4887/2003, a identificação das comunidades se processa da seguinte maneira:
“§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”.
A compreensão das comunidades quilombolas passa, no sentido atual de existência, pela superação da identificação dos grupos sociais por meio de características morfológicas. Tais grupos não podem ser identificados a partir da permanência no tempo de seus signos culturais ou por resquícios que venham a comprovar sua ligação com formas anteriores de existência. Argumentações teóricas que caminhem nesse sentido implicam numa tentativa de fixação e enrijecimento da concepção das comunidades quilombolas.
A perspectiva da autodefinição dialoga com os critérios postos pelos próprios grupos, a partir de suas dinâmicas e de seus processos atuais. Portanto, é uma dimensão que foca no existir atual e se relaciona com a perspectiva de grupo etnicamente diferenciado, tais como são concebidas as comunidades quilombolas. O direito à diferença é o correspondente implícito do direito à igualdade, princípio constitucional relevante para o Estado Democrático e de Direito. Afirmar as diferenças significa perseguir a igualdade entre os grupos. Nesse princípio se fundam as ações afirmativas.
Em relação ao processo de concepção do Decreto 4887/2003, cabe destacar que este se deu por meio de grupo de trabalho do qual faziam parte diversos ministérios, além da Advocacia Geral da União, Gabinete de Segurança Institucional – GSI, representantes do movimento quilombola, principalmente da Conaq , e especialistas no tema, com especial ênfase para a área jurídica e antropológica.
O Grupo de Trabalho, instituído em 13 de maio de 2003 pelo Governo Federal, teve como finalidade rever as disposições contidas no Decreto 3912/2001 e propor nova regulamentação ao reconhecimento, delimitação e titulação das terras de remanescentes de quilombos. Concluídos os trabalhos do referido Grupo, foi editado o Decreto n° 4887, de 20 de novembro de 2003.
Este instrumento legal substituiu o Decreto n° 3.912, de 2001 e regulamentava a Lei nº 7.668, de 1988. No Artigo 2º dessa Lei, era atribuído à Fundação Cultural Palmares a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, a realização do reconhecimento, da delimitação e da demarcação das terras por eles ocupadas, bem como proceder a correspondente titulação. Com o Decreto 4887/2003, a atribuição para a titulação dos quilombos passa da FCP para o INCRA.
O Decreto nº 3.912/2001 foi revogado pelo Decreto nº 4.887/2003 em razão da superação de diversos entendimentos canhestros que continha, como a adoção de critérios temporais para definir as terras pertencentes aos remanescentes de quilombos, em especial após o vigor da Convenção 169 da OIT.
No parágrafo único do Artigo 1º, o Decreto 3.912/2001 aponta que somente poderia ser reconhecida a propriedade sobre terras das comunidades que eram ocupadas por quilombos em 1888 e aquelas ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988.
Grave Vulnerabilidade dos Quilombos
Em muitas comunidades quilombolas, nas várias regiões do País, se faz presente uma grave situação de vulnerabilidade e insegurança. Essa situação se relaciona, em grande parte, ao conflito sobre a posse das terras por elas ocupadas e também à precariedade do acesso à infra-estrutura básica, necessária para a efetivação de condições de vida dignas. Os reflexos estão expressos, por exemplo, na não efetivação do processo de regularização fundiária da grande maioria dos territórios quilombolas, na falta de acesso à água potável, saneamento básico e demais públicas, como as de educação e saúde.
O elemento que causa maior impacto para as comunidades é titulação dos seus territórios. É a principal reivindicação do movimento quilombola e é a partir do território que a comunidade constrói e concebe seus mais importantes aspectos educacionais, de saúde, de sustentabilidade, enfim, seus aspectos sociais, culturais, econômicos e históricos.
Os presentes conflitos de terras que envolvem as comunidades quilombolas não as distinguem por localidade, nível de articulação e organização política ou características do território. Em todas as regiões, nas mais diferentes conjunturas, se apresentam graves conflitos fundiários. Os principais fatores dessa situação se relacionam à sobreposição dos interesses territoriais das comunidades com os do agronegócio, do mercado de terras e das elites políticas e civis regionais e nacionais. Outro elemento que complexifica essa situação de conflito é a baixa efetivação do procedimento de titulação das terras das comunidades quilombolas por parte dos órgãos governamentais responsáveis pela sua implementação.
Esses são elementos que constituem uma constante ameaça ao direito à terra, expressa nos permanentes processos expropriatórios que se concretizam por ordens de despejo, deslocamento forçado ou outras formas de perda da posse da terra pelas comunidades.
Muitos desses conflitos resultam em situações de homicídios, ameaças de morte, perseguição e violência contra os moradores, destruição de suas roças e do plantio por queimadas criminosas ou outras ações diretas de terceiros, além de ampla mobilização para invalidar as legislações voltadas para a regularização fundiária dos territórios quilombolas. Esses elementos debilitam severamente a sustentabilidade das comunidades quilombolas em seus territórios e as expõem a uma conjuntura de vulnerabilidade bastante acentuada.
Os conflitos territoriais, a falta de saneamento básico e de acesso a outras políticas públicas, são elementos que incidem para a situação de insegurança alimentar em muitas das comunidades, o que ficou latente nos dados obtidos na 1ª Chamada Nutricional Quilombola. A desnutrição tem um impacto muito severo nas crianças quilombolas. De acordo com a Chamada, a proporção de crianças quilombolas de até cinco anos desnutridas é 76,1% maior do que na população brasileira e 44,6% maior do que na população rural. A incidência de meninos e meninas com déficit de peso para a idade nessas comunidades é de 8,1% — maior também do que entre as crianças do Semi-árido brasileiro (6,6%).
A situação das crianças quilombolas é ainda pior quando analisada a desnutrição por déficit de crescimento: 316 (11,6%) têm altura inferior aos padrões recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde). As crianças quilombolas não crescem bem porque vão acumulando as conseqüências da desnutrição e das infecções, como a diarréia. Os últimos dados desse tipo para as crianças brasileiras como um todo estão na Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, de 1996: 10,5% das pessoas nessa faixa etária tinham déficit de altura — o que significa que a situação das crianças quilombolas em 2006 era pior do que a das brasileiras de dez anos antes.
Comparadas às crianças do Semi-árido brasileiro (região que concentra grande parte dos municípios de pior situação socioeconômica do Brasil), as quilombolas também apresentam uma situação nutricional inferior: a proporção de pessoas de até 5 anos com déficit de altura é 75,7% maior. As comunidades quilombolas têm uma situação de renda muito baixa, além de grande exclusão do acesso ao saneamento básico. A desnutrição na faixa etária de 0 a 5 anos de idade é resultado da alimentação e das infecções. A nutrição e o saneamento básico são os binômios fatais para a desnutrição.
A dificuldade no acesso à educação, à saúde, aos direitos básicos e fundamentalmente a fragilidade na garantia do acesso à terra, coloca as comunidades quilombolas numa grave situação de exclusão sócio-econômica que se reflete com mais força nas crianças. A não efetivação do direito à terra aniquila, seja pela desnutrição, pela violência ou pelo deslocamento forçado aos grandes centros urbanos, as comunidades quilombolas no País, que se constituem como um dos patrimônios culturais e sociais mais importantes de nossa história.
Ressaltamos a situação dos grandes centros, onde não há emprego, saúde e educação para todos. A violência, por sua vez, tem se acentuado vertiginosamente nos últimos anos. Os jovens, especialmente aqueles da faixa etária de 15 a 24 anos, são a parcela da sociedade mais exposta à violência. Essa violência tem cor e gênero como fatores de grande expressão. De acordo com a pesquisa da Unesco “Mapa da Violência Juvenil IV”, 93% dos homicídios têm como vítimas homens, e entre os jovens 74% desse total é de negros.
Os dados obtidos mostram que o índice de mortalidade por causas externas (homicídios, acidentes, suicídios) é maior entre os negros. Na população em geral, a taxa de homicídio é 65% maior entre negros (pretos e pardos) em relação aos brancos. Em alguns Estados, a diferença entre os índices de mortalidade da população branca e negra atinge picos de 300%, como no Distrito Federal, Paraíba e Pernambuco. No DF, por exemplo, são cinco vítimas negras para cada vítima branca.
O racismo no Brasil, todavia, apresenta-se e se afirma a partir de sua negação. A sociedade brasileira insistentemente tem negado a existência do racismo e do preconceito racial. Entretanto, as pesquisas têm mostrado aquilo que cotidianamente é reificado e reforçado, e que a lei áurea não foi capaz de romper: a imensa exclusão da população negra das universidades, da educação básica, do mercado de trabalho, dos postos de poder.
A não efetivação dos direitos territoriais quilombolas em grande medida tem gerado uma migração massiva de jovens rurais negros para os grandes centros. Essa realidade é uma questão para a toda a sociedade brasileira, pois a resolução desse passivo histórico contribui, também, para o reforço de um modelo mais sustentável social, ambiental e culturalmente.
As comunidades quilombolas simbolizam um outro modelo em relação à dinâmica frenética de mobilização demográfica para os grandes centros. A garantia de seus direitos fortalece, também, outras dinâmicas sociais que se colocam em paralelo à crescente e insustentável urbanização da sociedade brasileira e fortalece a perspectiva de um Estado que reconhece sua pluralidade.
Ação Direta de Inconstitucionalidade
Em 2004, o Partido da Frente Liberal – PFL, atual Democratas – DEM, impetrou Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI sobre o Decreto 4.887/2003.
Os principais argumentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade referem-se ao questionamento: da aplicação do procedimento de desapropriação sobre terras reivindicadas por comunidades quilombolas, pertencentes a particulares; do critério de auto-atribuição (autodefinição da própria comunidade); e da definição dos territórios com base em informações fornecidas pelas próprias comunidades interessadas. Além destes, o próprio ato de emissão do decreto é também questionado pela ADI, sob a alegação de que a constituição não deve ser regulamentada por decreto, mas sim por lei.
Considerando que o referido Decreto normatiza ato da Constituição Federal Brasileira (Artigo 68, do ADCT), a Procuradoria Geral da República defende que se deve reconhecer no artigo da Constituição norma jusfundamental e conceder-lhe interpretação que amplie ao máximo o seu âmbito normativo.
Nesse sentido, a Procuradoria Geral da República elaborou, em 17 de setembro de 2004, o Parecer nº 3.333, refutando as teses defendidas pela Ação Direta de Inconstitucionalidade.
O Presidente da República, representado pela Advocacia-Geral da União, também emitiu parecer contrário aos argumentos da ADI3239, em defesa do Decreto 4.887/03.
A seguir refutamos as teses argumentadas na ADI3239:
1. Sobre a questão dos atos de regulamentação da Constituição Federal, o Procurador explica que o decreto tem como fundamentos de validade diretos a Lei n° 9.649, de 1988, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e a Lei n° 7.668/1988, que constitui a Fundação Cultural Palmares. (2004:11). O Advogado-Geral da União sustenta que o art. 68 do ADCT é norma constitucional de eficácia jurídica plena e, por isso, não depende de edição de lei para ter aplicabilidade imediata. Nesse sentido, o Decreto n° 4.887/2003 apenas estabelece procedimentos administrativos para a titulação dos territórios quilombolas.
Em linha de argumentação complementar, o Procurador Walter Claudius Rothemburg destaca que:
“Aspectos específicos relacionados ao âmbito concreto (identificação de pessoas, delimitação de áreas etc.) e ao âmbito administrativo (órgãos competentes, procedimento...) não criam direitos e deveres ‘externos’, apenas regulamentam a atuação estatal, e não carecem, portanto, de lei para serem disciplinados.” (2007:02).
De outra parte, a questão da proteção às populações tradicionais põe a titulação das áreas quilombolas no âmbito da proteção dos direitos humanos. Esse aspecto se reforça com a incidência da Convenção 169 da OIT. Pois bem, é indiscutível que as normas de proteção dos direitos humanos têm imediata aplicabilidade, não podendo ter sua eficácia postergada.
Enfim, conclui-se que não há impropriedade na regulamentação estabelecida pelo Decreto, pois se refere a dispositivo constitucional auto-aplicável, normatizando seus aspectos administrativos, amparada por diversas leis pré-existentes.
O próprio Supremo Tribunal Federal manifestou entendimento unânime no julgamento da ADI nº 1.590-7, em que foi relator o Ministro Sepúlveda Pertence, sobre decreto que dispunha a respeito de limite máximo de remuneração em algumas entidades. Trata-se de caso semelhante, cuja matéria também é definida por dispositivo constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata e cuja regulamentação também poderia ser determinada por decreto, conforme entendimento do STF.
Por fim, no que se refere ao argumento de que o Decreto 4887 seria inconstitucional por suposta impossibilidade de regulamentar diretamente, por essa via, dispositivo da Constituição, a ADI quer ocultar o ingressso dos dispositivos constantes da Convenção 169 da OIT no ordenamento jurídico brasileiro, na condição de normas supralegais. É desse repositório que resulta, do ponto de vista jurídico, a superação do entendimento de que as populações tradicionais quilombolas fossem determinadas por critérios cronológicos e historiográficos.
A adoção, pelo Brasil, da Convenção 169 da OIT redundou na superação da convenção anterior, de número 107. Se a Convenção 107 conceituava os povos tribais e semitribais como os não integrados na comunidade nacional, com o novo tratado se introduziu molde explicitamente étnico para a conceituação dos povos tribais, ao qual se ajustam perfeitamente as comunidades quilombolas, ao conceituá-los como aqueles
“... cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos total ou parcialmente por seus próprios costumes ou tradições, ou por uma legislação especial”.
Ressalte-se que a adequação das comunidades quilombolas àquele conceito, e como a incidência das regras da Convenção 169 da OIT à situação dessas populações tradicionais já teve o reconhecimento do Poder Judiciário, merecendo ser mencionadas a sentença da Justiça Federal do Maranhão que, em mandado de segurança impetrado em nome de integrantes do Território Étnico-quilombola de Alcântara, concedeu a eles o direito de plantarem suas roças no interior da área do Centro de Lançamento de Alcântara, e, destacadamente, a decisão da Em. Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, do Tribunal Regional Federal da Região:
“Neste contexto, pois, o referido Decreto viria disciplinar as disposições do art. 68 do ADCT, aduzidas dos critérios fixados na Convenção nº 169-OIT. Esta, por sua vez, plenamente aplicável aos quilombolas, porque incluídos estes na disposição do art. 1.1."a" como "povos tribais", no sentido de serem aqueles que, "em todos os países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que sejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou legislação especial". Ademais, previu que: a) os governos deverão "adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse" (art. 14, 2); b) deverão ser "instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados" ( art. 14, 3 c/art. 1.3, no tocante ao entendimento de "povos" da Convenção). Daí porque o regulamento poderia disciplinar tais situações.”
Desse ponto de vista, a regulamentação feita pelo Decreto 4887 não teria sido a regulamentação pura e simples do art. 68 da Constituição Federal, mas da norma supralegal decorrente da adoção da Convenção 169 da OIT, com que se mostra vazio de sentido o questionamento feito pela ADI.
2. Sobre o argumento da desapropriação, o Procurador da República é taxativo. “No caso de a terra reivindicada pela comunidade quilombola pertencer a particular, não só será possível, como necessária a realização de desapropriação”.
O fundamento legal apontado para esse ponto é o § 1º do artigo 216 da Constituição Federal Brasileira, que dispõe o seguinte:
“O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.”
Esse artigo, assim como o que o precede, Artigo 215, refere-se aos grupos formadores da sociedade brasileira, dentre eles as comunidades remanescentes de quilombos. Nesse sentido, o parecer da Procuradoria ressalta a pertinência de tais comunidades sob a proteção jurídico-constitucional do referido dispositivo. O Advogado-Geral da União observa, no mesmo sentido, que:
“a regularização fundiária deve necessariamente respeitar a pluralidade de formas de ocupação da terra decorrente da diversidade sócio-cultural e étnica”.
O artigo 68 também fundamenta a implementação de desapropriação, pois a emissão de títulos como atividade fim pressupõe os meios para sua consecução. Nesse sentido, ao determinar ao Estado a titulação dos territórios quilombolas, entende-se que o Constituinte está também garantindo os instrumentos para efetivação da norma constitucional.
Vale lembrar que os procedimentos utilizados para desapropriação de territórios quilombolas estão embasados em instrumentos legais que há tempos vêm subsidiando a atuação dos órgãos do Poder Executivo, quais sejam, desapropriações por utilidade pública (prevista no Decreto-lei 3.365/1941) e por interesse social (prevista na Lei 4.132/1962). Sobre a alegação apresentada na ADI3239 do suposto aumento de despesa que tais procedimentos implicariam, ressaltamos que as despesas decorrentes da implementação dessa política pública estão expressamente previstas e delimitadas nos instrumentos legais apropriados (Plano Plurianual, Leis Orçamentárias Anuais, dentre outros).
3. Sobre a auto-atribuição, o Procurador Geral da República ressalta que a matéria da definição identitária a partir de tais critérios pertence à disciplina da Ciência Antropológica e não do Direito. Nesse sentido, vale destacar as palavras do Procurador:
“No presente caso, para a delimitação do conteúdo essencial da norma do art. 68 do ADCT, não pode o jurista prescindir das contribuições da Antropologia na definição da expressão ‘remanescentes das comunidades dos quilombos’.”
Conforme argumentamos, os estudos antropológicos demonstram que a cultura não se constitui como uma unidade estática, mas sim como um processo em constante movimentação. As construções de identidades realizam-se em situações de contato entre grupos sociais, a partir das diferenças ressaltadas por cada grupo. A Antropologia destaca, assim, a relevância do ponto de vista dos próprios atores sociais.
O Procurador cita estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Direito Público, um exemplo da interface entre Antropologia e Direito, que se refere ao critério de auto-atribuição como sendo a construção “mais eficiente e compatível com a realidade das comunidades quilombolas”, em relação à “simples imposição de critérios temporais ou outros que remontem ao conceito colonial de quilombo.” (2004:16).
Além disso, conforme acima exposto, a auto-atribuição está referendada na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, da qual o Brasil é signatário.
O próprio Decreto ainda traz a exigibilidade de que essa auto-definição seja em seguida certificada pela Fundação Cultural Palmares..
4. Sobre a definição dos territórios a serem titulados a partir de informações prestadas pelas comunidades interessadas, lembramos que o Decreto prevê outros critérios para além da auto-identificação, como a trajetória histórica própria da comunidade, as relações territoriais específicas por ela estabelecidas e a ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica vivida pela comunidade. Tudo isso reveste de objetividade a auto-atribuição inicial.
Nesse ponto também se ressaltam os preceitos antropológicos para definição do território das comunidades quilombolas. Considerando a devida amplitude de interpretação do Artigo 68, entendemos como intuito do legislador ao inserir esse artigo no ADCT da CF/88 garantir, no presente, condições de vida adequadas aos remanescentes das comunidades de quilombos. Ao legislar sobre tal assunto, imaginamos também que o Constituinte buscava reparar dívida histórica do Estado brasileiro com a população afro-descendente, que atuou de maneira cabal na construção da nação, pouco desfrutando das riquezas que com seu trabalho foram geradas.
Nesse sentido, entendemos que a definição dos territórios das comunidades quilombolas, com vistas a garantir a reprodução física, social e cultural do grupo, deve levar em consideração as áreas utilizadas para moradia, atividade econômica, caminhos e percursos, uso dos recursos naturais, realização dos cultos religiosos e festividades, bem como outras manifestações culturais e manifestações de caráter cosmológico. No contexto da conceituação antropológica, isso é o que configura efetivamente um quilombo.
Conforme determina o Decreto em seu artigo 3, §1º, é necessária regulamentação pelo INCRA dos procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. Sendo assim, em conformidade à regulamentação determinada pela Instrução Normativa nº49/2008 – INCRA, as dimensões de ocupação do espaço são sistematizadas em relatório técnico, fundamentado em informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, sócio-econômicas, históricas, etnográficas e antropológicas, o qual embasa a identificação e delimitação final do território quilombola. Destacamos por fim que o Decreto também prevê procedimentos para manifestação e contestação de qualquer interessado no caso.
Vale destacar ainda que a ADI3239 retoma em sua argumentação alguns dos pontos apresentados no Decreto nº 3.912/01, especialmente a vinculação do direito garantido na Constituição Federal a critérios de temporalidade.
Sobre esse ponto, são muito pertinentes as críticas formuladas pelo Procurador da República Walter Claudius Rothemburg, ao comentar o antigo Decreto n° 3.912/2001:
“O equívoco do decreto aqui [no art. 1o, parágrafo único, incs. I e II] é evidente e não consegue salvar-se nem com a melhor das boas vontades. Do ponto de vista histórico, sustenta-se a formação de quilombolas ainda após a abolição formal da escravatura, por (agora) ex-escravos (e talvez não apenas por estes) que não tinham para onde ir ou não desejavam ir para outro lugar. Então, as terras em questão podem ter sido ocupadas por quilombolas depois de 1888. Ademais, várias razões poderiam levar a que as terras de quilombos se encontrassem, em 1888, ocasionalmente desocupadas. Imagine-se um quilombo anterior a 1888 que, por violência dos latifundiários da região, houvesse sido desocupado temporariamente em 1888 mas voltasse a ser ocupado logo em seguida (digamos, em 1889), quando a violência cessasse. Então, as terras em questão podem não ter estado ocupadas por quilombolas em 1888. Tão arbitrária é a referência ao ano de 1888 que não se justifica sequer a escolha em termos amplos, haja vista que a Lei Áurea é datada de 13 de maio: fevereiro de 1888 não seria mais defensável do que dezembro de 1887.
Não fosse por outro motivo, essa incursão no passado traria sérias dificuldades de prova, e seria um despropósito incumbir os remanescentes das comunidades dos quilombos (ou qualquer outro interessado) de demonstrar que a ocupação remonta a tanto tempo.”
4. Destaca-se que a votação favorável à Ação Direta de Inconstitucionalidade anula o Decreto 4.887/03, revalidando automaticamente o Decreto 3.912/01, representando assim um grande retrocesso na garantia dos direitos das comunidades quilombolas determinados pela CF/88. A Procuradoria Geral da República chama atenção para o fato de que os critérios definidos no Decreto 4.887/03 são muito mais apropriados ao direito resguardado pela CF/88 do que aqueles definidos no decreto anterior. Na mesma linha, o Advogado-Geral da União defende a constitucionalidade do Decreto 4.887, tendo em vista sua indiscutível compatibilidade com a legislação que lhe dá fundamento e com a Constituição Federal.
A partir das explanações feitas, argumentamos que a alegação de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03 representa uma movimentação contrária ao reconhecimento efetivo do direito de propriedade aos remanescentes de comunidades de quilombos, apresentada sob a roupagem do questionamento quanto à validade jurídica do Decreto.
Quem vos fala
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) é a integração das organizações locais e estaduais de quilombos. De sua composição se destacam associações, federações, coordenações e comissões que têm como característica a luta pelos direitos das comunidades quilombolas. Organizam-se de modo apartidário e autônomo, com ênfase para o fato de que se figuram como instâncias das comunidades, voltadas especificamente aos objetivos delineados nas localidades das quais provém. Cada estado apresenta sua dinâmica e sua forma de estruturar sua rede de ação política.
A seguir estão listadas as organizações quilombolas que integram a CONAQ:
-Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ);
- Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado de São Paulo (COQESP);
- Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara/MA (MABE);
- Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santos;
- Federação Quilombola de Estado de Minas Gerais (N`GOLO);
- Coordenação das Associações Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará (MALUNGU);
- Associação Quilombola do Estado do Rio de Janeiro (AQUILERJ);
- Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado do Paraná;
- Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul (FACQ);
- Coordenação Estadual das Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba (CECNEQ);
- Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ);
- Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas de Pernambuco (CECQ);
- Coordenação Estadual Quilombola do Amapá - AP;
- Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Norte;
- Associação do Quilombo Kalunga/GO (AQK);
- Coordenação Regional das Comunidades Quilombolas da Bahia (CRQ);
- Associação Ecológica do Vale do Guaporé/RO (ECOVALE);
- Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Mato Grosso do Sul-CONERQ;
- Comissão Quilombola de Mato Grosso;
- Comissão Provisória Quilombola do Estado de Santa Catarina;
- Comissão Quilombola de Alagoas;
- Comissão Quilombola de Sergipe;
- Comissão Quilombola do Ceará;
- Comissão Quilombola de Tocantins.
- Associação da comunidade quilombola de Mesquita -DF
www.PetitionOnline.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário