Produção Simbólica e Diversidade Cultural Afro brasileira
por: Jacqueline Freitas, Rosane Borges
É dado incontestável o fato de o homem se constituir como ser simbólico. O ser falante/social, marca registrada do homem, torna-se distinto de outros animais pela assunção da ordem simbólica. Esta se refere a uma operação de diferenciação/substituição que organiza o mundo com um dado a ver, a vivenciar. Trata-se de uma operação de separação que marca a passagem natureza/cultura. Segundo o antropólogo Ernest Cassirer, o homem não vive num universo puramente físico, mas num âmbito fundamentalmente simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo o progresso humano no pensamento e na experiência aperfeiçoa e fortalece esta rede.A ordem simbólica é o lugar onde se constitui o humano: ser social, falante, fabricante, uma vez que lhe dá acesso ao mundo por meio das significações que institui. É ele que garante o distanciamento da natureza, à construção do mundo, à construção da realidade a ser vivida, nos fornecendo um quadro comum de referência com o qual tecemos a História.Por esta condição, percebemos que a produção simbólica, a produção cultural é nexo prioritário para a emancipação humana em sua radicalidade. Muitas vezes reduzida a apenas algumas de suas possibilidades, a cultura possibilita uma redefinição dos códigos sociais, políticos e econômicos que regem a dinâmica das relações. A ordem simbólica nos diz, assim, que o homem é um ser de cultura que, no sentido antropológico do termo, é “um conjunto complexo que inclui os saberes, as crenças, a arte, o direito, os costumes, assim como todas as maneiras e regras usadas pelo homem que vive em sociedade”.Esta definição nos leva ao menos a duas conseqüências. De um lado, liga a dimensão de cultura à dimensão social do homem: implica as criações que operam o homem que vive em sociedade, e para que esta existência social se realize e se reproduza. Se cada indivíduo deve ter seu direito reconhecido de aceitar, recusar ou modificar sua herança cultural, então a cultura pertence a uma dimensão coletiva essencial. De outro lado, esta dimensão coletiva pode visar o reconhecimento de grupos historicamente discriminados, resgatando o estatuto universal de sua produção cultural. Sob esse olhar, poderemos então falar de cultura, de direitos culturais e de diversidade cultural.Diversidade Cultural Afro-BrasileiraNo que diz respeito à cultura afro-brasileira, como podemos ver nela o estatuto do universal do ser humano a partir de matrizes africanas que foram ressignificadas no contexto brasileiro? São várias as perspectivas que se abrem para uma intervenção cultural que não se queira apenas restrita à festividade efêmera e passageira.Sabemos da influência monumental dos negros na formação da cultura nacional. A diáspora africana no mundo, com a experiência dolorosa da escravidão moderna, legou aos diversos países o exercício de práticas culturais tão plurais quanto incontáveis. As variadas etnias dos escravizados, bantos, nagôs, jejes – extratos que deram origem às religiões afro-brasileiras –, e hauçás e malês – de origem islâmica e alfabetizados em árabe – trouxeram, igualmente, tradições distintas.Dança, música, religião, culinária e idioma brasileiros foram banhados nas matrizes fundantes da cultura brasileira (africana, indígena e européia), desenhando os contornos de um país plural em suas manifestações. Se por um lado, a presença indisfarçável da cultura afro-brasileira é consenso, por outro permanece o desafio de combinarmos cultura e estrutura. Somos um país assimilacionista do ponto de vista cultural (nos formamos a partir de influências africanas, indígenas e europeia), mas excludente do ponto de vista das estruturas sociais. Diversidade cultural e pluralidade não são correlatas de equidade e acesso igualitários a bens simbólicos. Como promover, então, a aproximação entre cultura e igualdade, a fim de que possamos vivenciar a experiência da pluralidade, livre das assimetrias que marcam o jogo das relações raciais? Como fazer da diversidade cultural afro-brasileira um meio pelo qual redefinamos a dinâmica social, marcada por assimetrias sociais?Um dos caminhos, entre os vários trajetos possíveis, é, como consideram os pesquisadores Ratts e Damascena (2006), identificar a produção do conhecimento, o saber, o fazer negro africano nas práticas cotidianas, já que a cultura e as práticas culturais são elaboradas cotidianamente, transformando o conhecimento em experiência de aprendizagem, do mesmo modo que a própria experiência vivida se transforma em conhecimento. Aprende-se por meio da socialização. Em todos os momentos da existência, na relação com o outro e nas ações vividas é que nos constituímos. Essa constituição é elaborada constantemente e se revela nas mínimas coisas. Assim, pormenores normalmente considerados sem importância e triviais carregam muitos elementos importantes que nos permitem captar a realidade. Considerar os mais diversos elementos presentes nas práticas, como alimentação, vestuário, oralidade, gestualidade, sonoridade, odores ou sabores, permite decifrar a diversidade e a complexidade da realidade histórica da população afro-brasileira e alegar participação igualitária da população negra na vida nacional. O patrimônio cultural da população negra é composto de bens materiais e imateriais, que são expressões dessas comunidades, nos mais diferentes aspectos: objetos, costumes, canções, rituais, encontrados na religião, na culinária, nos modos de tecer e de vestir. Uma retomada de vozes que ficaram silenciadas por opressões históricas é fundamental e necessária para uma compreensão democrática de educação e, por conseguinte, das relações sociais. O primeiro movimento para esta escuta é o reconhecimento da existência de espaços outros que não o da educação formal, como portadores de saberes. Para isso, é necessário tomar como imprescindível, para o entendimento desses saberes, os nexos entre educação e cultura, considerando que uma não existe sem a outra, ambas sendo alimentadas e alimentando-se na arte e na memória.Esse princípio é revestido de exigência ética sem a qual não poderemos ensejar práticas culturais que promovam a emancipação e a igualdade entre os povos que construíram o Brasil.
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