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No Brasil, os negros sofrem não só a discriminação racial devida
ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o
racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são
dirigidas e se materializa nelas
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por Márcia Pereira Leite
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“Na primeira vez em
que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não
havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV
brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são loiros de olhos azuis.” (Spike Lee)1
O comentário do cineasta norte-americano
Spike Lee, em recente visita ao Brasil para filmagem do documentário Go Brazil Go, no mesmo período em que o Supremo Tribunal
Federal (STF) julgava a constitucionalidade das cotas raciais em
universidades públicas, despertou várias discussões na imprensa e nas redes
sociais sobre o racismo na sociedade brasileira. Desses debates, é possível
depreender quanto ainda persiste do mito de que o Brasil seria uma
“democracia racial” em que, a despeito do preconceito, não haveria nem o ódio
nem a segregação que caracterizaram o regime do apartheid. Nosso racismo combinaria o preconceito de
cor e o preconceito de classe, diluindo-se no caso de negros educados e bem-sucedidos
e implodindo no samba, no carnaval, enfim, na cultura popular brasileira.
Queremos chamar a atenção para o que ficou
ausente nesse (e em outros) debate sobre o racismo no Brasil: os mecanismos
de discriminação produzidos e operados pelas estruturas e instituições
públicas e privadas que os reproduzem e os fortalecem. Nesta reflexão,
propomos seguir o giro da ciência social, nos anos 1960, em sua análise das
relações raciais: “Abandonar os esquemas interpretativos que tomam as
desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por
atitudes (preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo
que ficou conhecido como racismo institucional, ou seja, na proposição de que
há mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema social e que
funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.2
O racismo constitui, como se sabe, um
mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e
dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu
com a colonização, com o genocídio colonizador. O racismo é, como disse
Foucault, “o meio de introduzir [...] um corte entre o que deve viver e o que
deve morrer”. “No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das
raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação das
raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser
uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu;
uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos
outros. [...] o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de
tipo guerreiro − ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ − de uma
maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o
exercício do biopoder.”3
Para o autor, “a especificidade do racismo
moderno, o que faz sua especificidade, não está ligada a mentalidades, a
ideologias, a mentiras do poder. Está ligada à técnica do poder, à tecnologia
do poder”,4 isto é, ao biopoder enquanto um poder
(estatal) de regulamentação que se exerce sobre populações e consiste em
“fazer viver e deixar morrer”.
(Afrodescendentes protestam contra o baixo número de negros na
Fashion Rio Verão 2012/2013)
Racismo institucional
no Brasil
O argumento central deste artigo consiste em
que, no Brasil, negros sofrem não só a discriminação racial devida ao
preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o
racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas
e se materializa nelas. Trata-se de discriminação racial praticada pelo
Estado ao atuar de forma diferenciada em relação a esses segmentos
populacionais, introduzindo em nossas cidades e em nossa sociedade, pela via
das políticas públicas, “um corte entre o que deve viver e o que deve
morrer”, a faxina étnica.
A expressão, utilizada para evidenciar as
relações entre o racismo e as políticas estatais para territórios e
populações negras no Brasil, não é mera retórica. Antes, sustenta que as
elevadas taxas de homicídio e de “autos de resistência”5 nos territórios de maioria negra, as políticas de remoção
e de despejo de sua população, os altos índices de encarceramento de negros
pobres, a precariedade das políticas públicas de habitação, saúde e educação
para o conjunto da população negra e o desrespeito a suas tradições culturais
e religiosas não são sucessivos produtos do acaso ou do mau funcionamento do
Estado,6 mas traduzem o racismo institucional que
opera no Brasil bem ao largo de qualquer perspectiva de integração social e
urbana desses segmentos populacionais pela via da cidadania.
Esse modo específico de gestão estatal das
populações negras e de seus territórios de moradia − que “faz viver e deixa
morrer”, como diz Foucault − pode ser identificado no âmbito das políticas
públicas praticadas pelo Estado brasileiro. Examinemos alguns dados empíricos
que expressam o sentido e o escopo de sua formulação e de sua realização.
Os negros são as maiores vítimas de homicídio.
No período de 2002 a 2008, segundo dados do Mapa da violência 2011,7 o
número de vítimas brancas na população brasileira diminuiu 22,3%; já entre os
negros, o número de vítimas de homicídio aumentou 20,2%. Os dados são mais
dramáticos quando se consideram os jovens: o número de homicídios de jovens
brancos caiu, no período, 30%, enquanto o de jovens negros cresceu 13%, o que
significa que a brecha de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%. Se
considerarmos os homicídios praticados pelas forças policiais e
registrados/encobertos pelos “autos de resistência”, vemos que eles também
vitimam mais intensamente os negros: de 2001 a 2007, incidiram sobre esse
segmento 61,7% dos homicídios praticados por agentes do Estado.8 Não se trata simplesmente de abuso policial ou de
despreparo de policiais em situações de confronto. A consistência dos dados e
sua persistência no período, em que pese a redução desses homicídios nos
últimos anos em algumas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e
São Paulo,9 indicam uma política de extermínio de negros
(jovens, sobretudo) − o “fazer morrer” − praticada pelo Estado, por meio de
seus agentes, ou por ele tolerada.10
Mas, como vimos, a tecnologia do poder também
“faz viver”, ainda que em distintas condições para esses diferentes segmentos
populacionais, brancos e negros. É o que demonstra uma pesquisa realizada em
2003 pelo Ministério da Saúde,11 que
revelou indicadores de saúde diferenciados da população brasileira segundo o
critério raça/cor. Analisando seus resultados, Meireles12 destaca que 62% das mulheres brancas ouvidas realizaram
sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto somente 37% das mulheres negras
passaram pelo mesmo número de consultas. Talvez por isso a hipertensão
arterial durante a gravidez, uma das principais causas de morte materna,
tenha sido mais frequente entre as mulheres negras. Além disso, o risco de
uma criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e
parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer pela
mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre
crianças negras do que entre as brancas.
Já os dados do Relatório anual das
desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010demonstram que os negros representam cerca de 60% daqueles que,
por motivos diversos, não conseguem atendimento no SUS, sendo os maiores
percentuais os relativos às mulheres negras − o que, sem dúvida, argumenta o
autor, evidencia a precariedade do dispositivo constitucional que assegura a
universalidade do direito à saúde no país.
No plano da educação, todas as pesquisas
apontam que, ainda que o acesso tenha crescido no país nos últimos anos, a
presença dos negros no ensino médio, universitário e na pós-graduação
permanece significativamente menor do que a dos brancos – diferença que se
torna exponencial nos níveis superiores de formação. A razão, ressaltam, é
clara: enquanto os brancos recorrem a escolas particulares (sabidamente, no
Brasil, de melhor qualidade) no ensino fundamental e médio e, assim, obtêm
melhor formação intelectual para ingresso nas universidades públicas, aos
negros restam as escolas públicas (crescentemente sucateadas) nos níveis
fundamental e médio e o caminho das universidades privadas. Mesmo com essa
estratégia, também no campo da educação as desigualdades raciais são gritantes:
em 2008, a probabilidade de um jovem branco, de 18 a 24 anos, frequentar uma
instituição de ensino superior era 97,8% maior do que a de uma jovem negra da
mesma faixa etária.13
No plano da moradia, os indicadores sociais
revelam a mesma diferenciação no interior das políticas públicas, ou como o
Estado “faz viver” esses contingentes populacionais. Os territórios de
maioria negra nas cidades (favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias)
são carentes de equipamentos urbanos e serviços públicos de boa qualidade. O
déficit habitacional brasileiro (cerca de 5,5 milhões de unidades) é fruto da
ausência de uma política estatal de habitação popular, o que resultou na
precariedade que caracteriza as atuais condições de moradia e vida nessas
localidades.14
Além disso, em várias de nossas grandes
cidades que vêm sendo reestruturadas para favorecer a especulação imobiliária
e/ou sediar “grandes eventos” e assim se inserir nos fluxos internacionais de
acumulação urbana, essas populações têm sido compulsoriamente removidas das
localidades em que sempre viveram, criaram seus laços de vizinhança e
parentesco, suas alternativas de sobrevivência (em trabalhos formais,
pequenos comércios ou “virações”).15 São,
então, reassentadas em locais distantes, ambientalmente precários,16 com infraestrutura urbana de má qualidade, sem redes de
sociabilidade nem alternativas de trabalho; enfim, sem lugar na sociedade,
sem direito à cidade.
Muito além do
preconceito
Os dados analisados e as situações descritas
revelam quanto as desigualdades sociais têm cor e estão profundamente
enraizadas no racismo institucional que estrutura a sociedade brasileira e se
materializa por meio das políticas praticadas pelo Estado, em todos os seus
níveis. O que queremos sublinhar ao discuti-los é que, no Brasil, as
desigualdades sociais se somam e são elevadas pelas desigualdades raciais.
Mais do que isso: as desigualdades raciais estão no cerne do modo de gestão
estatal dos territórios de maioria negra e desta população.
Trata-se de um novo modo de gestão estatal de
territórios e de populações, que dispensa os tradicionais discursos e
práticas de integração à sociedade nacional pela via da cidadania (da
educação, do trabalho e dos direitos) por entender que essas populações são
desnecessárias ao atual desenvolvimento do capitalismo.
Vivemos, hoje, uma mudança no eixo da atuação
do Estado, cujo sentido passou a ser – simplesmente – evitar que essas
populações negras, pobres e moradoras em territórios de favelas, loteamentos,
bairros pobres e periferias produzam problemas para a ordem social. Suas
estratégias combinam, desde então, diferentes políticas e mecanismos de
controle social repressivo (até o “deixar morrer”) com políticas de mera
inserção17/mínima sobrevivência (o “fazer viver”),
travestidas, no plano discursivo, de integração à cidadania e à sociedade.
No primeiro caso, especialmente nas situações
em que a criminalização da pobreza tem sido mais eficiente, o Estado atua
promovendo ou acobertando a segregação socioespacial e as políticas de extermínio
e de encarceramento, sobretudo de jovens negros. No segundo, atuando nos
territórios de maioria negra, o Estado oferece a essas populações uma ilusão
de integração por meio de políticas públicas que há muito abandonaram os
princípios da universalidade e da justiça (são pontuais, descontinuadas; os
serviços e equipamentos que criam são de má qualidade) ou patrocinando
projetos sociais realizados por organizações não governamentais que seguem a
mesma lógica, além de criminalizar sua clientela, entendida como “população
vulnerável ao crime”. Em ambos os casos, o racismo institucional soma-se às
desigualdades sociais, raciais e urbanas que historicamente estruturaram
nosso país, aprofundando-as e revelando que estamos muito longe da “diluição”
dessas desigualdades e da possibilidade de uma efetiva integração social e
urbana dos negros pobres na sociedade brasileira.
Márcia Pereira Leite
Professora do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uerj, pesquisadora do CNPq, membro do
Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Cevis/Uerj) e integrante
do Círculo Palmarino.
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quarta-feira, 17 de abril de 2013
Preconceito racial e racismo institucional no Brasil
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