domingo, 2 de novembro de 2008

Implementando a Lei 10.639/03 – desafios e possibilidades




Por Silvany Euclênio


A Folha de S. Paulo publicou no dia 27/10/2008, matéria sobre a Lei 10.639/03, na qual o MEC admite ter fracassado na garantia da sua implementação, apesar do investimento de “mais de R$10 milhões gastos na capacitação de professores”. Sobre isso, temos algo a dizer.
Com certeza, estamos muito longe da concretização das determinações da Lei 10.639/03, e mais longe ainda de uma educação para a igualdade étnico-racial no Brasil. A própria lei 10.639/03 tem suas limitações. Uma delas é o fato de não estabelecer a obrigatoriedade da sua aplicação em todos os níveis educacionais. A educação das relações étnico-raciais, necessariamente, precisa começar na Educação Infantil, pois é nesse nível de ensino os valores são formados e a interlocução com os familiares acontece mais assiduamente. Do outro lado, se o Ensino Superior não foi incluído, as faculdades públicas e privadas de licenciatura, vão continuar despejando milhares de profissionais da educação no mercado, totalmente despreparados para uma prática educacional que promova o pluralismo.
O maior problema é, sem sombra de dúvida, o veto ao artigo que previa a participação do Movimento Social Negro na implementação da Lei. Ora vejamos, a Academia ignorou os conhecimentos relacionados à história e cultura dos afro-brasileiros, quando não reforçou os estereótipos, até bem pouco tempo. Esses conhecimentos foram preservados e reproduzidos em todo o país pelas comunidades negras tradicionais e por ativistas do MN, pessoas abnegadas e autodidatas, que por décadas “mendigaram” espaço nas escolas para contar aos brasileirinhos e às brasileirinhas em formação, de todas as origens raciais, uma parte essencial da sua história e cultura, negada pelo sistema educacional do país. Nessa luta, recuperamos importantes heróis negros e construímos a data nacional mais lembrada e celebrada atualmente no Brasil, o Dia Nacional da Consciência Negra.
A exclusão do Movimento Social Negro organizado não somente amputou grande parte da possibilidade de eficácia da Lei, mas também abriu espaço para oportunistas e “novos negreiros”, que se apresentam para capacitar professores, quando eles próprios possuem um conhecimento superficial e distante da realidade histórica, social e cultural da população negra. Talvez isso explique em parte o fato de, dez milhões de reais depois, o MEC analisar o próprio fracasso em garantir a aplicação da Lei.
Em Ribeirão Preto, podemos afirmar, sem receio de errar, que nos últimos dois anos, nas Unidades Escolares da Rede Municipal, a implementação da Lei 10.639/03 deixou de ser meramente fruto de iniciativas individuais de professores de “boa vontade”.
Estamos nos referindo ao Projeto Baobá, fruto de intensa negociação política entre o Centro Cultural Orunmilá, organização do Movimento Negro, com a atual administração municipal, cuja eficácia já pode ser atestada, apesar estar funcionamento há menos de dois anos. Os resultados alcançados são frutos de alguns elementos muito concretos:
Primeiro, o Projeto Baobá foi constituído como uma um política da Secretaria Municipal da Educação, na atual administração.
Segundo, ele foi concebido e é executado em permanente diálogo com o Movimento Negro, inclusive com a contratação de uma profissional da educação, cuja história sempre esteve ligada às lutas do povo negro, escolhida e indicada pelo Centro Cultural Orunmilá para compor a equipe técnica da Secretaria e coordenar as ações voltadas para a questão étnico-racial.
Terceiro, inclui todos os níveis educacionais da Rede Municipal e todas as unidades curriculares.
Quarto, a formação é considerada como um processo permanente, e tem sido voltada para todos/as profissionais que atuam na rede municipal (gestores/as, docentes, servidores administrativos, inspetores/as de alunos/as, servidores da cozinha, do refeitório e de serviços gerais), considerando também que os processos educacionais no ambiente escolar devem se dar em todas as relações e não apenas na sala de aula. Nos parece temerário e corajoso por parte do MEC afirmar que capacitou “40 mil professores”. Não cremos que seja possível reverter 500 anos de ignorância e equívocos, com uma dezena, ou uma centena, de horas de formação à distância ou mesmo presencial.
Quinto, todas as unidades escolares têm sido instrumentalizadas com materiais bibliográficos e audiovisuais que tratam da temática étnico-racial, criteriosamente analisados para garantir que realmente contribuam para a desconstrução dos estereótipos e afirmação do pluralismo. Foram entregues mais de 8 mil exemplares entre 2007 e 2008, incluindo materiais de pesquisa, didáticos e títulos literários, tanto para municiar o corpo docente, como para diversificar o acervo disponível para a leitura dos alunos e das alunas. O material disponibilizado pelo MEC é em quantidade tão limitada que, muitos deles, mal dariam um exemplar para município brasileiro.
Sexto, a promoção da igualdade étnico-racial está progressivamente passando a ser um dos eixos de muitos dos documentos que regulam e regulamentam a educação no município.
Temos consciência de que a continuidade desse trabalho, nas próximas administrações dependerá de novas negociações e muita pressão, considerando que a construção de uma educação, que promova a igualdade étnico-racial, ocorre num processo de constante disputa política e ideológica contra o eurocêntrismo que sempre regeu o poder a educação no país.
Não podemos deixar de citar também o Município de Santa Rosa de Viterbo, que, em 2008, estabeleceu um plano de formação dos professores e das professoras, que inclui praticamente a metade do seu corpo docente e tem desenvolvido diversas ações no sentido de implementar a Lei.
Nos anima a notícia de que o MEC pretende lançar o Plano Nacional de Implementação da Lei 10.639/03 ainda em 2008. E esperamos contribuir para isso com esse breve relato do trabalho que desenvolvemos.

*Professora, historiadora, ativista do MN e coordenadora do Projeto Baobá.

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