quinta-feira, 10 de setembro de 2009

As mulheres negras e o ritmo

(Bate Tambor - Leci Brandão/
Zé Maurício )

1 As mulheres negras e o ritmo

A relação das mulheres com os instrumentos de percussão não pode ficar desvinculada da concepção de ritmo vital do princípio feminino da tradição africana, mais especificadamente da tradição nagô. O papel mulher se delineia a partir da idéia de criação da vida, que se revela desde suas rotinas diárias, que envolvem o nutrir, o organizar a comunidade até o administrar a vida.. Entre os gorjeios de um canário amarelo, que com seu canto encanta as manhãs , em meio à conversa com as plantas –energia cósmica revelada no verde, que responde, entende e comprova a estreita relação de nossa energia com a dos orixás, as mulheres vivem a relação de vida e morte, marcada pelos batimentos do coração, que comanda o ciclo vital. Vida é ritmo, é movimento em harmonia.
Na cultura negra brasileira as mulheres são representadas nos mitos como propiciadoras de caminhos e meios para a aquisição, transformação ou transferência de axé.(energia de vida) O axé se transmite numa relação interpessoal e dinâmica, num processo de comunicação direta, plena de ritmo vital, onde a palavra, compassada e ritmica, é básica e fundamental. O axé se desenvolve na comunidade-terreiro que funciona como um centro irradiador de todo um sistema cultural, do qual a oralidade é um de seus elementos, mas que deve ser visto em função do todo.
Pode-se concluir, então, que na cultura negra , o SOM, a PALAVRA, são elementos mobilizadores, que conduzem a ação, que propiciam AXÉ. .Desta forma, a mulher se destaca como doadora da vida, guardiã principal e transmissora das tradições religiosas e culturais, sendo o laço que liga o Sagrado com a vida biológica e espiritual, por ser a zeladora da matéria mítica que modelou o ORI de cada pessoa, mantendo o ritmo da vida.
Nas comunidades-terreiros essas mulheres enérgicas, descendentes de antigas escravas libertas,. reelaboraram um templo mítico e um espaço sagrado de essência africana. São elas as IYÁs ou Mães de santo ,que recriaram num novo lugar para a sua família e para a comunidade, com suas filhas e filhos de santo , utilizando a palavra falada ou cantada, acompanhada de dança ou de gestos miméticos que possibilitam a integração entre mundo visível e invisível., buscando o equilíbrio do ritmo vital, pois a perda do ritmo significa doença ou morte.
A autoridade máxima de uma terreiro é a iyalorixá ou babalorixá, sendo que o corpo religioso da casa se organiza por cargos masculinos e femininos, segundo a tradição. O cargo de alabê, responsável por tocar e cantar para os Orixás nas festas, é masculino, escolhido entre os ogãs da casa, por conta dos mitos, que ordenam a ordem e a contra-ordem social dos terreiros. O Ogã Alabê é o tocador dos instrumentos de percussão, chamados de rum, rumpi e lé, representação da orquestra de tambores Batá nos terreiros jeje-nagos. Ele passa por todos os rituais de consagração e tem a obrigação principal de conduzir os toques, em especial durante as festas públicas. Diz-se, com freqüência, que o atabaque é a fala dos orixás, o instrumento principal de seu apelo, o que pode dar uma medida dos compromissos e responsabilidades dos Alabês.

2.O mito do tambor Batá


Segundo a professora e dançarina Inaicyra Falcão dos Santos(2002) o tambor Batá é o fio condutor do movimento , se ligando a Ayán, símbolo do fogo, princípio vibrante. Explica ainda que, segundo os mitos, nos primórdios da civilização, não existia nada parecido com o tambor na cidade de Oyo-Oro. Ali morava uma mulher chamada Ayántoke, mas todos a chamavam de Ayán. Esta mulher não tinha filhos e andava sozinha pelo mato, sempre carregando um pedaço de madeira oco. Um dia, viu uma pele de bode e pensou que poderia cobrir as extremidades da madeira que carregava e tirar um som. Porém, quando ela batia no couro com um pedaço de pau ele rasgava. Ela insistiu várias vezes no seu intento, tendo usado até um pedaço de couro em forma de tira para bater nas extremidades do tronco, sem sucesso. Um dia, quando tentava mais uma vez, Exu apareceu e deu-lhe tiras de couro de veado e disse que amarrasse com firmeza o couro no tronco. E foi nesse momento que o tambor emitiu um som melodioso. Ayán começou a tocar o tambor por toda a cidade e as pessoas corriam para ouvi-la., muito surpresos, porque nunca tinham ouvido nada igual. Ayán passou a ganhar muitos presentes. Xangô – orixá do trovão – rei da cidade, quando a ouviu tocar, convidou- a para morar no palácio. Ela tornou-se a tocadora oficial do palácio de Xangô. Todos sabiam que ela não podia ter filhos, mas também sabiam que, mais cedo ou mais tarde, ela teria um filho, já que qualquer mulher estéril que entrasse no palácio de Xangô se tornava fértil. E assim foi.. Ayán casou-se com Xangô e logo teve um filho que foi chamado de Aseorogi. Ela passou toda a arte de tocar e construir o tambor para o seu filho Ayán é, até hoje, o nome dado a todos os membros de uma família cultuadora do tambor, entre os povos iorubá.
Ayán, então, é o símbolo do tambor Batá, orixá dos tocadores e que é cultuado somente por eles.
Entendemos, então, o conceito de Ayán como sendo o espírito do tambor Batá, que sobreviveu nos terreiros nagô ,no Brasil, como um ritmo específico, produzido pelos atabaques rum, rumpi e lê e que faz parte do universo de diversos orixás. Para. Inaicyra F.dos Santos(2002) o tambor batá promove uma dança na qual os movimentos não são feitos de forma aleatória, mas são simbólicos, sendo elemento integrador na comunicação com o sobre-humano sendo disseminador de mensagens. Assim, a prática litúrgica se torna um fator aglutinante e transmissor de uma tradição riquíssima.


3. As caixeiras


As mulheres negras simbolizam toda a capacidade de criação do ser humano, sendo que , segundo o mito de Ayan, as mulheres delegaram a seus filhos homens a arte de tocar e construir o tambor. Poucas são as ocasiões em que as mulheres negras fazem o ritmo da dança.
Em São Luís do Maranhão, durante a festa do Divino, no Domingo de Pentecostes, vamos encontrar as caixeiras, que são as mulheres idosas que tocam tambores ou caixas para saudar o império e o mastro e que se constituem em elementos fundamentais da festa. Segundo Ferreti (1985) as caixas do Divino são tambores de madeira revestidos de couro nas duas extremidades, com armação de metal e cordas, pintadas com cores vivas, em azul, vermelho ou verde e com símbolos do Divino, a coroa ou a pomba, que são presas por cordas que servem para pendurá-las ao pescoço nos desfiles e danças e são tocadas por duas varetas. As caixeiras costumam ser em número de três ou múltiplo de três. Na festa cada uma é acompanhada por uma bandeira levada por uma menina, que a auixilia e em alguns lugares executa uma dança junto com a caixeira. As caixeiras e bandeiras às vezes usam roupas do mesmo tecido e enfeitam o cabelo com uma espécie de flor de jasmim grande, muito perfumada, que floresce nesta época do ano. Elas entoam cantigas em louvor ao Divino, que são repetidas em coro pelos demais. As caixas, antes de serem usadas, são batizadas por padrinhos que custeiam sua aquisição. O batismo das caixas costuma ser feito no levantamento do mastro, usando-se velas, toalha, uma bebida e cada caixa recebendo um nome.
Somente as caixeiras tocam no Domingo ao amanhecer, fazendo o toque da alvorada junto ao mastro., acompanhando a procissão do Divino em todo o seu percurso. A festa do Divino é um dos raros momentos em que contamos com mulheres ritmistas dentro das comunidades-terreiros. Nas cerimônias rituais os atabaques são tocados pelos ogãs e alabés.


4- As mulheres ritmistas

No Rio de Janeiro as baterias das escolas de samba foram inicialmente formadas pelos alabés das comunidades-terreiros dos bairros a que pertenciam. Assim, cada escola de samba tinha o seu toque característico, por conta de seus ritmistas tocarem para Ogum , Xangô ou Oxóssi, já que ,sendo o tambor a fala dos orixás, cada um tem as suas cantigas e toques próprios. Com a gravação dos sambas em disco e o aperfeiçoamento dos desfiles, as baterias já não se distinguem como antes, sendo que a maneira de tocar e o som de cada escola ficou muito parecido. Poucas mantiveram sua forma original, com exceção da Mangueira, que também proibe em seu estatuto que mulheres toquem na bateria. A maioria das escolas já contam com mulheres ritmistas nas baterias
Nas escolas de grupo especial, filiadas a LIESA, temos na Unidos do Viradouro uma ala de Xequerê (uma cabaça coberta de miçangas) com cerca de dez ritmistas tocando á frente dos demais instrumentos de percussão. Já na Unidos da Tijuca vamos encontrar cerca de 21 mulheres na ala do chocalho, além de existirem 2 ou 3 na ala dos tamborins.. No Acadêmicos do Salgueiro temos uma mulher tocando surdo de primeira e várias no tamborim e no chocalho. No Império Serrano e na Mocidade Independente de Padre Miguel também vamos encontrar mulheres na bateria nas alas de chocalho e tamborim. As mulheres são aproximadamente 2%das baterias, sendo que nas escolas dos demais grupos é mais comum a presença de mulheres na bateria tocando caixa e repique.
A Escola de Música Villa Lobos conta com uma experiência pioneira no Rio de Janeiro, sob a responsabilidade do professor e percussionista Ricardo Riko, que foi diretor da ala de tamborins do Salgueiro, que comanda a primeira bateria só de mulheres do Rio. São 250 ritmistas com idades entre 8 e 80anos, que descobriram os prazeres do surdo de primeira, do tantã, do xequerê e dos demais instrumentos que embalam as escolas de samba. A bateria desfilou com a Escola de samba mirim Corações dos Cieps neste carnaval de 2004.
O Prof .Riko ,que comanda há três anos a bateria de mulheres do Rio, afirma que “os homens não se conformam”, mas que quem é pioneiro num ramo sempre enfrenta preconceito. Já conta com 480 alunas, mas selecionou apenas250 para o desfile da Sapucaí. As ritmistas, que seguem à risca os mandamentos da bateria, freqüentando os ensaios pelo menos três vezes por semana, garantem que qualquer sacrifício vale a pena. Algumas, como Maria Tereza Azevedo, carinhosamente apelidada de Terezão pelas companheiras, pela facilidade com que toca o pesado surdo de primeira, conta que seu maior sonho era desfilar numa bateria. Da mesma maneira, Bruna Guimarães Batista, uma das caçulinhas da bateria, que tem apenas 13 anos, tocou surdo na Sapucai, pela primeira vez em 2003,realizando, banhada em lágrimas, um de seus sonhos mais caros.
O samba está vinculado a práticas lúdicas e religiosas de escravos e seus descendentes, mais explicitamente à batucada. Segundo Inaicyra F. dos Santos (2002) o aprendizado do batá se relaciona a todas as formas de arte(canto, dança música), afirmando que o quem toca o tambor precisa saber a função de todos os toques, já que o ritmo complexo que produz com suas mãos e sentimentos produz uma força criadora-inventiva, que estabelece relações entre o seu universo e o público, por tocar profundamente no espírito e nas emoções. Assim ,a tradição cultural da comunidade afro-descendente ,a força de Ayan, se faz presente em todos os eventos, permeando a sociedade como um todo, possuindo uma forte comunicação entre as diferentes artes, por ser interdinâmica e interpessoal e com uma simbologia que se relaciona com a tradição cultural africana. A dança do samba é revelada precisamente por meio da expressão do ritmo produzido pelos tambores Batá, que são os atabaques no contexto brasileiro. A música é o produto que dirige o comportamento no grupo, é o som organizado, possibilitando o aspecto social entre aqueles que compartilham experiências individuais e culturais por intermédio dos artistas. A mulher negra é , segundo os mitos, o elemento básico do ritmo, da dança e da criatividade.

Bibliografia

Braga, Julio. A cadeira de Ogã e outros ensaios.Rio:Pallas,1999.
Ferretti, Sérgio Figueiredo. Querebentam de Zomadonu: etnografia da Casa das.
Minas. São Luis : Edufuma,1985
Rocha, Agenor Miranda. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro: a nação Ketu:
Origens ,ritos e crenças. Rio: Topbooks,1994.
Santos, Inaicyra Falcão dos. Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural.
De dança-arte-educação. Salvador: EDUFBA,2002

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