sábado, 16 de fevereiro de 2008
Por que não cotas?
Claudia Fonseca (antropóloga, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, Núcleo de Antropologia e Cidadania)“Brasil não é um país racista”, ouvi na televisão ontem de um professor da UFRGS se manifestando contra cotas raciais. Que alívio, penso eu. Então o fato de brancos no Brasil viverem na média seis anos mais do que negros deve ser conseqüência de algum problema físico desses “outros”. Brasil “não tem segregação racial”, leio numa coluna de opinião contra as cotas. Que bom. Aquela porção (quase o dobro dos brancos) que vive amontoada nos aglomerado subnormais deve refletir um gosto cultural pela vida simples. “Não há prova estatística impedindo a ascensão social de negros”, leio de outro autor escrevendo contra cotas. Que consolo pensar que aquele grande número de negros vivendo abaixo da linha de pobreza (46.8% contra 22,4% dos brancos) deve ser porque eles simplesmente não se esforçam mais! Quanto à universidade, já que temos o vestibular para dar um atestado de neutralidade ao sistema meritocrático, devemos reconhecer que a falta de estudantes negros reflete não a discriminação racial, mas, sim, o quê? Uma inteligência inferior? Claro que não, pois esse seria um argumento racista. Não há negros na universidade, os anti-cotistas explicam, simplesmente porque esses postulantes ao vestibular têm menos anos de estudo do que os brancos e em escolasde pior qualidade. Seguindo essa lógica, a solução não é encontrar mecanismos para corrigir distorções e incluir esses historicamente prejudicados indivíduos na educação superior. É esperar que o sistema de educação fundamental melhore (ou se alguém está com pressa, que mude de bairro e entre numa escola de qualidade!). Perdoem o tom irônico desse texto – mas fico pasma com esses argumentos pois, ao meu ver, revelam uma lógica profundamente racista. Pergunto – se não existe racismo no Brasil, como explicamos que, casualmente, os negros são os mais pobres, os mais doentes, os menos escolarizados da população? Se não é por causa da discriminação racial, deve ser por incompetência mesmo.... Quanto à questão do “racismo institucional” , podem me explicar por que a porcentagem de negros no sistema prisional continua a bater todos os recordes? Além do “mero” efeito da pobreza desproporcional entre negros, pesquisadores como Sergio Adorno já demonstraram que, diante de acusações semelhantes, o réu negro é preso e condenado com muito mais freqüência do que seu cúmplice branco...Aliás, é difícil entender como os anti-cotistas podem se abraçar aos argumentos sofistas de um jornalista, Ali Kamel, já amplamente criticado por sua total incompreensão da estatística (ver Luis Nassif ) quando os estatísticos mais qualificados do pais, trabalhando no IBGE e PNUD chegam a conclusões completamente opostas. (*Blog de Nassif: http://z001. ig.com.br/ ig/04/39/ 946471/blig/ luisnassifeconom ia/2006_10. html)É como se os anti-cotistas estivessem comprando integralmente a noção da “democracia racial” – mito cunhado por Gilberto Freyre e já amplamente criticado por cientistas sociais durante esses últimos trinta anos. Claro que não existe segregação racial ou racismo no Brasil – do ponto de vista dos brancos que já têm acesso às benesses do ensino superior. Esses não têm preconceito contra “pessoas de cor”, desde que elas aceitem se conformar ao lugar delas indicado pelas regras “universais” de nossa seleção. Será que algum jovem afro-brasileiro já mostrou ressentimento pelo fato de que não encontra praticamente nunca um médico ou dentista negro? De que, conforme o IBGE, o negro brasileiro, em 2000, ganha na média a metade do que ganhava o branco brasileiro em 1980 (com valores corrigidos)? De que um colega branco tem mais de cem vezes as chances de entrar na universidade (obrigada André). Bem – talvez haja um pouco de ressentimento – mas esse ressentimento não é nadaem relação ao ódio racial que os brancos vão sentir se imaginam que algum negro está “burlando” o sistema (que sempre funcionou tão bem!) e passando na frente da fila. É assim que devemos entender o argumento dos anti-cotistas?Se a maioria desses argumentos soam absurdos, há alguns que expressam uma dúvida compreensível. Será que cotas na universidade pública vão servir para combater a discriminação racial e desigualdade social no Brasil? É evidente que, nessa sociedade complexa, não é possível prever todas as variáveis que vão influenciar os resultados – positivos e problemáticos – das cotas. É também evidente que uma política isolada não surtirá por si só grande efeito. Por outro lado, a situação atual é intolerável para qualquer cidadão consciente do grau de desigualdade (racial e social) em nosso país.Já existem mais de trinta instituições no país experimentando diferentes formas de cotas e, ao que tudo indica, não ocorreu nenhum cataclismo. Na grande maioria de casos, as cotas não semearam conflitos raciais entre os estudantes, não provocaram a perda de prestígio, nem a repentina degringolada de qualidade do ensino superior. Em outras palavras, a experiência com cotas – tal como a experiência com cotas para mulheres, indígenas,”nordestino s”, ou qualquer outra categoria -- rende resultados diversos que valem a pena ser observados, analisados para reconhecer erros e ir aprimorando o sistema. Mas, para tanto, temos que ter a coragem de ensaiar novas políticas. A luta contra o assustador status quo tem que começar em algum lugar. E onde melhor do que numa instituição que se preza por sua reflexão crítica e politicamente engajada? Denise Fagundes Jardim (Antropóloga – Professora do Departamento de antropologia – IFCH/UFRGS, Núcleo de Antropologia e Cidadania)Há uma grande probabilidade de que os egressos da universidade, em especial, aqueles formados pelas ciências humanas, conheçam muito da história do Brasil a partir do enfoque dos brasileiros como parte do mundo dos civilizados. É provável que conheçam nossa história entrelaçada a escravidão de negros e aprisionamento de indígenas como uma “etapa superada” das relações sociais neste nosso mundo social. Há, também, uma forte probabilidade que esse egresso dominem argumentos de um debate constitutivo da antropologia como ciência, quando no século XIX os profissionais se debatiam com os parâmetros de cientificidade e atuavam científica e politicamente denunciando o quanto o racismo encontrava na ciência as bases de sustentação para classificações fenotípicas e de presunção de inferioridade e superioridade racial. Há uma enorme probabilidade, sabendo que esses alunos se tornarão profissionais no âmbito do Brasil, que tenham um conhecimento bastante fundamentado e seja extremamente articulados para falar sobre esse Brasil, denunciar injustiças sociais e, de alguma maneira, outorgar-se no direito e no dever de “melhorar” a sociedade. É provável que repitam genericamente que o Brasil tem uma dívida histórica com o segmento negro e indígena, e que os capítulos recentes da história do Brasil republicano não vem cumprindo com as promessas de igualdade de oportunidades.Mas, há também uma enorme possibilidade que os mesmos sujeitos que falam sobre o Brasil não estejam sendo preparados nas universidades para vivenciar a diversidade cultural e as desigualdades, se não como um Brasil que se localiza fora da universidade, em um lugar distante. As cotas são fundamentais para a universidade, para uma sala de aula diversificada em que, nem o professor possa tecer suas teorias, nem os alunos façam afirmações, sem ter de submete-la às objeções de seus colegas, com experiências diversas. É claro que advogo as cotas como algo que pode ser proveitoso para as ciências humanas, mas lembro dos livros de etnomatemática indígena publicados recentemente por antropólogos, das aulas de orientação espacial que recebemos entre os quilombolas em Mormaça. Portanto, deve haver coisas que não imagino e que me inclinam a acolher o ingresso de cotistas como uma abertura para novos problemas e desafios científicos. Talvez eles nem venham, nem cotistas, nem desafios científicos. Mas não há problemas, me contento em entrar em sintonia com meu século e com a necessidade de uma ciência que se descolonize e que, no caso da UFRGS, se desprovincialize.As cotas e ações afirmativas tem o mérito de fazer sair do armário algumas presunções sobre a raça.. Não só as que circulam de forma ampla entre aqueles que tem a experiência-de- perto sobre o ônus da classificação e a vivência dos “tribunais cotidianos”, como me lembra a colega Daisy Barcellos. Esta é uma experiência que fica opaca quando vista de longe pelos que, do alto de seus condomínios, os observam. Lembro que muita gente teve que reconhecer, por contraste, de que é “quase-branco” e isso já foi um enorme passo para pensarmos sobre a quem socialmente nos dirigimos quando falamos de raça? O debate transformou o indizível em uma realidade que permite inspecionar quais as situações que convertem uma diferença, em uma desigualdade.Sou contra “tribunais raciais”, inclusive os cotidianos. Defendo a autodeclaração. Não me agrada a idéia de tribunais que checam a veracidade da auto declaração de cor ou origem, que te colocam como objeto e não como sujeito histórico. Ou, que te “incitam a falar de si como um dos pobres perseguidos do mundo” e não com a dignidade de quem veio ao mundo para negociar novas perspectivas e políticas públicas. Em um ambiente tão crítico, o constrangimento moral é um dos mecanismos de evasão escolar que não é uma inovação na universidade. Acredito que as cotas aprovadas tornam-se a nossa responsabilidade de inclusão de negros e indígenas na universidade. Passamos da promessa para a difícil tarefa de não comprovar as teses contrárias às cotas e diplomar os ingressantes. Deveríamos aproveitar a oportunidade para pensar sobre novas formas de refletir e pensar sobre a evasão escolar, sobre políticas estudantis dignas, sobre uma sala de aula pautada pela prática do questionamento e do diálogo. Tudo o que inclui e promove a permanência de cotistas deve promover a vida acadêmica das unidades e dos demais estudantes.O que me incomoda é que o tribunal já começou e abre seus trabalhos dizendo que preconceito não existe porque raça não existe. Que espécie de retórica monocromática é essa? Ela é “puramente” científica ou está engajada em colocar um “pé na porta?” Uma coisa é tecer uma teoria sobre o mundo, outra coisa é discorrer sobre o seu mundo social mais próximo e abolir a possibilidade de falar sobre raça porque não é cientificamente correto. De outra parte, a cota não é uma unanimidade entre os negros e devemos respeitar esse fato.Muitos estudantes e formados negros no Brasil têm o mérito de diplomar-se na universidade, ingressando por vestibular. Há mérito e muito investimento nisso. Há também um custo familiar, uma série de saberes, como se comportar, como não errar, como ser, no mínimo, perfeito. Nenhum destes formados, por certo, pensara até então, o efeito de ter o apoio do Estado. Apenas o ônus de ser visto como um diferente. Ocorre que algumas vozes negras são veiculadas e dizem que “não precisam de cotas”. Já se antecipam ao bombardeio racista que o incriminaria por passar “por baixo dos panos”. Devemos respeitar a experiência e a escolha de cotistas e não cotistas ao se submeter ao vestibular através do sistema de cotas. Devemos sim nos ater sobre como vamos lidar com as perversidades do racismo que espreita nossas relações, que não são o futuro das cotas, mas nosso presente.Portanto, nosso problema atual não é se as cotas servem ou não para promover situações de igualdade de condições e de acesso à universidade. Isso já foi votado pelo congresso. Não podemos ter a arrogância de dizer “aqui não, neste pedaço eu que mando”. Somos tão somente funcionários federais. As vagas não são “nossas” e sim, vagas da universidade pública. Há uma grande probabilidade de que sem as cotas é a universidade quem está perdendo: perdendo em aprender a lidar com os desafios da diversidade. Sim, a diversidade não é o paraíso, tampouco é o Brasil. O que não podemos é preparar um inferno para os cotistas. Esse não seria o nosso inferno futuro, não há uma catástrofe que se anuncia, apenas vozes divergentes e creio que podemos conviver com a divergência. O que não podemos conviver é com o totalitarismo monocórdico que sustenta que as diferenças trazem problemas. Não é necessário temer aquilo que já presenciamos. Afinal, há uma grande probabilidade de que já estejamos sentindo todos os sintomas da implementação de cotas de ingresso de negros e indígenas na universidade. O sistema de cotas, inclusive pelo que exige de troca de idéias e abertura de novas atitudes, possivelmente já começou.AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO: RELATO DE UMA TRAJETÓRIA.Vera Rodrigues (Mestre em antropologia social/UFRGS)No momento em que, especialmente, a comunidade acadêmica discute a adoção de cotas sociais e raciais na UFRGS, venho a público expor minha trajetória profissional como fruto de um projeto coletivo alicerçado na perspectiva das ações afirmativas. O meu lugar de fala é de alguém que vem se construindo pessoal e profissionalmente, a partir dessa perspectiva. Portanto, dialogo no terreno da concretude dessas ações e seus efeitos para a sociedade, esperando assim contribuir para um olhar que se projeta para além do “negro” objeto do debate, mas como sujeito. Em 1995 ingressei no pré-vestibular comunitário Zumbi dos Palmares, o qual se inseria em uma ótica de projeto alternativo de educação. Por essa ótica, privilegiava- se a educação popular atenta para as desigualdades sócio-raciais. O curso funcionava com professores voluntários, em espaços cedidos, dentre eles uma sala na FACED – Faculdade de educação/UFRGS. Este foi meu primeiro contato com esta universidade e, foi a partir daí que resolvi adentrar o seleto grupo dos 2% de universitários negros brasileiros, pois aprendi nas aulas de cultura e cidadania do ZPPV que o acesso a educação constituía um direito primordial ao qual o segmento populacional a que pertenço vem sendo excluído. Pela primeira vez, eu soube que no “Paraíso tropical” da igualdade e democracia o acesso à educação havia sido construído, já no século XIX, com uma lei complementar à Constituição de 1824 (Império) que proibia os negros de freqüentar escolas equiparando- os aos doentes de moléstias contagiosas - vigor até 1889 (início da República). Em 1854, o decreto 1.331A instituía a obrigatoriedade da escola primária para crianças maiores de 07 anos e a gratuidade das escolas primárias e secundárias da Corte, com exceção das crianças com moléstias contagiosas e escravas. No Brasil do século XX a Lei no 5.465/68, a qual vigorou até 1990 instituía cotas nas universidades públicas, por meio da chamada “Lei do Boi”, que prescrevia: “Os cursos de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, de 50% de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio.” No Brasil do século XXI, as ações afirmativas na educação, especialmente direcionada à população negra e indígena, são questionadas quanto a sua legitimidade !! Assim em 1999, tornei-me aluna do curso de graduação em ciências sociais na UFRGS. Detalhe: Uma turma (curso noturno), em torno de 50 alunos(as), sendo uma das 03 três únicas pessoas negras. Esta era nossa cota de inclusão. Ao longo do curso, opto pela antropologia depois de ouvir um professor dizer que ali estava o “outro” que ninguém ou poucos queria trabalhar. Acreditei e me inseri na temática das relações raciais, sendo orientada pelo único professor negro do curso, exemplo de outra cota de inclusão. Em 2004 ingresso no mestrado de antropologia social. Agora, ainda que ao lado de uma colega moçambicana, a cota percentual de inclusão se mantém inalterada. Em 2006, torno-me professora universitária atuante e nos diferentes contextos observo que a cota perdura. Atualmente, me preparo para ingressar no doutorado com uma bolsa de um programa internacional de ações afirmativas. Esta trajetória longe de constituir-se pela lógica individualista de “alguém que se fez por si mesmo”, entende que desafio de ser única instiga a contribuir para a mudança desse quadro social. Por essa via, tornei-me pesquisadora e professora compromissada com um conhecimento que não compreende a esfera acadêmica institucional ou a atuação dos seus integrantes como isenta de responsabilidades sócio-politicas. Vera RodriguesMestre em antropologia social/UFRGSProfessora no curso de ciências sociais/URCAMP - Ciência política/Faculdade Montserrat. ____________ _________ _________ _________ _________ _________ _________ _________
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