quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Princípios norteadores para elaboração do Projeto Político da População Negra para o Brasil

Por Edson França*


Parcela significativa do movimento negro brasileiro se encontra em processo congressual, após um rico período de negociações, duas Assembléias Nacionais marcaram esse momento: no dia 13 de janeiro, no Rio de Janeiro delegação de nove estados reuniram para chamar o Conneb – Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil, estabelecer o objetivo e comando do processo. Nos dias 20, 21 e 22 de abril, em Belo Horizonte, com a presença de delegados de quase todas entidades/articulações nacionais e 23 estados, cobrindo todas as regiões do Brasil, realizou-se o Ato de Lançamento do Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil, além da Assembléia Nacional que aprovou o Regimento Interno do Conneb. O objetivo estratégico do Conneb é elaborar um Projeto Político da População Negra para o Brasil, para isso estabeleceu regimentalmente o temário, que será discutido em quatro Assembléias Nacionais em São Paulo, Porto Alegre, Belém e Salvador, respectivamente, da seguinte forma: São Paulo – diagnóstico; Porto Alegre – Políticas Públicas de superação do Racismo no Brasil e no Mundo; Belém – Ações Políticas e Plano de Lutas; Salvador – organização e documento final.

Considerando que toda essa estrutura organizativa e metodológica foi elaborada por muitas cabeças num período de quase seis anos; considerando o coletivo de entidades, lideranças que aderiram a proposta do congresso; algumas provocações são necessárias antes de entrarmos no mérito, ou no conteúdo do projeto. Devemos resistir a tentação de formular “por cima” sem a presença de todos os negros e negras que estão se organizando para o Conneb. Por isso o grande desafio desse momento é refletir o método que pode ser utilizado para elaboração do projeto. Com objetivo de contribuir preliminarmente com o método compreendo que seja importante delinear quais valores e princípios fundamentais que poderão ser norteadores na elaboração do Projeto Político da População Negra para o Brasil. Compreendo que sem esses norteadores teremos dificuldades de elaborar algo com originalidade e em consonância com a experiência e necessidade da população negra; mais ainda corremos risco de elaborar cópias mal feitas de programas de partidos, ou cópias mal feita de experiências internacionais. Além do risco de afogarmos em falsas polêmicas, produzir ambiguidades e contradições desnecessárias, não conseguirmos evitar “choques de verdades” entre pessoas, organizações e forças políticas mobilizadas na construção do Conneb.

Vale lembrar que outros elementos essenciais, não necessariamente compreendidos como princípios e valores, deverão se incorporar na reflexão, são parte integrante do método para confecção do Projeto Político da População Negra para o Brasil, destaco dois: factibilidade, ou seja, de possível implementação, sob pena de elaborar algo distante de nossa capacidade de viabilizar-lo e colocar em prática as propostas contidas no projeto, temos que evitar que o projeto se constitua em um ótimo documento de boas intenções, mas sem capacidade de construir cenários positivos para população negra; interatividade, que dialogue com os anseios emergente, imediato, cotidiano, perceptível da maioria população brasileira, especialmente da negra; capacidade de acumular forças, de estabelecer alianças (prioritariamente com a classe operária, onde se encontra a maioria das mulheres e homens negros), que tenha capacidade de interagir, fazer mediações com nossos sonhos e utopías. Temos que ter capacidade de chamar a população negra a buscar algo que lhe diz respeito, sem negar a necessária ruptura com o Estado capitalista.

Precisamos de um projeto que possa garantir direitos fundamentais: como paz, vida, família, liberdade, religião, trabalho, saúde, educação, habitação, prosperidade, oportunidade, dentre outros. Nosso fim estratégico é contribuir para construção de um país socialista, compreendendo que o capitalismo é antítese de liberdade, justiça, direito e paz. Como forma de caminharmos para uma nova sociedade devemos democratizar todos os espaços de sociabilidade e de exercício de poder, impor a presença das pessoas independente de raça, credo e convicção ideológica em todos lugares que interessam a coletividade. Segue alguns princípios, devemos no processo de debate agregar outros, nesse texto estou preocupado em fixar o método.


Democracia: a luta pela democracia tem caráter estratégico para populações vitimizadas pelo racismo, pobreza, violência, que se encontram em estágio de recuo na luta de classes. A democracia permite a organização dos oprimidos, o debate público, correção de rumos, conquista de adesão, corações e mentes. Por isso devemos primar por um projeto democrático. Falta elaborarmos que conceito de democracia devemos agregar ao nosso projeto, mas certamente não será a democracia em que o derrotado eleitoralmente perde o direito de interferir nos processos políticos; não será a democracia que desconsidere a busca do convencimento, da honradez, da integridade da palavra, valores tão caro aos povos africanos; não será a democracia que elimine ou sufoque as minorias sociais e políticas. Temos que desocidentalizar esse conceito, ou melhor, deseurocentralizar, buscando elementos e valores africanos capaz de substancializá-lo, de dar um sentido que açambarque o melhor da experiência universal humana.

Universalidade: esse princípio se coloca devido a certeza de que os não-bancos são maioria no Brasil, mais ainda, os não-brancos são maioria universal, por isso não justifica estarem a margem da riqueza mundial em razão da concentração de poder e riqueza nas mãos de uma minúscula elite branca. No Brasil, segundo o IPEA, os auto-declarados negros compõe 49,6% da população – houve um crescimento de cinco dígitos, fruto do bem sucedido trabalho do movimento negro, pois o ataque mais feroz do racismo foi na identidade do negro, para dividi-lo e garantir a dominação -, concentrados majoritariamente dentre os pobres. A experiência dos africanos e seus descendentes como povos oprimidos historicamente na África e na diáspora os credencia e os obriga a lutar contra todas as formas de opressão. É necessária construir a convicção que os povos negros serão aqueles que se libertarão e ao mesmo tempo emanciparão todos os povos oprimidos. A história provou a capacidade dos negros enfrentar e superar as adversidades sem corromper sua humanidade, isso os qualificou e temperou para essa tarefa. O Projeto da População Negra Para o Brasil deverá atuar universalmente contra a opressão. O Estado brasileiro se nega peremptoriamente universalizar suas intervenções, sempre priorizou a elite e aqueles que menos precisam, como consequência se agiganta o fosso social entre pobres e ricos, brancos e negros. É possível redirecionar as prioridades do Estado brasileiro e garantir a efetividade do princípio da universalidade nos investimentos públicos, o Brasil produz riquezas e estabelece trocas capaz de suprir indistintamente todas as necessidades humanas de seu povo. Compreendendo que universalizar não é dar tudo a todos, mas dar equanimemente, em outras palavras “de cada um sua capacidade e a cada um sua necessidade”. Universalização equânime é um princípio revolucionário, anti-capitalista e anti-racista, pois projeto político de maioria numérica, econômica e política voltado exclusivamente para uma raça foi pronunciadadmente negativa e geradora das maiores calamidades históricas (Jim Crow nos Estados Unidos, apartheid na África do Sul, as leis de Nuremberg na Alemanha nazista e a faxina étinica em Ruanda onde a maioria hutus perpetrou um genocídio contra a minoria tutsis, não aceito o comum argumento de alguns militantes do movimento negro de que foi culpa dos brancos belgas enão da elite hutus que brigava pela conquista do poder político em Ruanda). Esse conceito aceita ações afrimativas, políticas específicas focalizadas, que vem sendo cobradas do poder público pelo movimento negro brasileiro.

Equidade: segundo o dicionário Aurélio, “equidade é a disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um”. Complementando esse significado, o debate das ações afirmativas convencionou que “devemos dar tratamento desigual aos desiguais a fim de atingir a igualdade”. O significado atribuido a palavra e a frase que sustenta as ações afirmativas são auto-explicativas, temos que focalizar as intervenções do Estado buscando superar as desigualdades entre as pessoas, entre os gêneros, entre as regiões geográficas, entre as gerações. A eqüidade exige altruísmo, um valor comum nas sociedades africanas não contaminadas pela modernidade, pela ganância ou pelo ódio (como os hutus em Ruanda), mas contraditório com o capitalismo e com as sociedades desenvolvidas. Terá a medida correta de altruísmo o projeto que o movimento negro brasileiro está elaborando?

Anti-Racismo: esse princípio é fundamental, sintetiza a experiência histórica do negro, hegemonizar a inspiração anti-racista no pensamento humano será sua maior obra, pois desde os primórdios da colonização das américas os povos negros sofrem as duras consequências do racismo. Sentem na pele que o racismo não é bom. Não há povo que tão duramente sofreu e sofre no dia-a-dia as agruras do racismo, do preconceito e da discriminação racial. Fundamentalmente no Projeto Político da População Negra para o Brasil não haverá espaços para nenhuma forma de discriminação e preconceito racial e o racismo será nosso alvo prioritário. Não aprofundaremos a divisão entre brancos e negro, queremos um Brasil uno, desenvolvido, capaz de oferecer segurança ao seu povo, por isso não haverá racismo, não haverá nenhuma forma de revanchismo, trabalhamos para edificar um mundo que reine a solidariedade, a paz e o socialismo.

Hegemonia: esse é um princípio político-operacional do Projeto Político da População Negra para o Brasil, pois sem capacidade de disputar hegemonia na atual ordem os defensores do projeto que confeccionaremos não acumularão forças políticas capaz de tirar do papel, toda construção do Conneb, prevemos mobilização do movimento negro em todos estados e grandes municípios que desembocará em uma caravana à Brasília, após colherem 1,3 milhões de assinaturas de apoio ao projeto transformar-lo num projeto de lei de iniciativa populae e entregar ao Presidente da República e aos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Mesmo com todo esse empreendimento sem a disputa da hegemonia nosso esforço será disfuncional. Daí a necessidade imperiosa da formação de quadros políticos para somar-se a luta anti-racista, de garantir educação para população negra e pobre, presença de negras e negros nos partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais. Das iniciativas das organizações, forças e ativistas do movimento negro continuarem em curso durante a construção do Conneb, precisamos que o congresso ocorra com aquecimento total da luta do movimento negro – mesmo que dissociada organicamente ao congresso. Daí a obrigatoriedade do estabelecimento de alianças com outros setores e segmentos sociais, especialmente com os trabalhadore. Daí a importância das políticas públicas e da capacidade de gradualmente obter pequenas conquistas que darão substância para luta estratégica da população negra – que é a derrota do racismo e do estado burguês, capitalista, reacionário, racista e anti-democrático. Sabemos que a emancipação da população negra brasileira acarretará perda dos previlégios de uma minoria branca, irão reagir. Para evitar derrotas e traumas incuráveis, temos que nos posicionar com nossos aliados a altura de vencer o ódio e a força da elite racista brasileira. Por isso o Projeto Político da População Negra para o Brasil dirá o que queremos e como atingirmos o que queremos.














*Edson França: Historiador e Coordenador Geral da Unegro

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